Você gosta da Petrouchka, de Stravinsky? E do Quarteto para o fim dos tempos, que Messiaen escreveu num campo de concentração? E da “Sertaneja”, de Brasílio Itiberê, precursor da música nacional erudita? E da Sinfonia da lamentação de Gorecki, compositor polonês? E do Rudepoema, que Villa-Lobos dedicou a Arthur Rubinstein? E do “Officium Defunctorum”, canto gregoriano com o sax de Jan Garbareck?
Fiz essas perguntas por pura maldade, de propósito… Escolhi umas peças que poucos conhecem. É possível que você nunca as tenha ouvido. Assim provavelmente sua resposta vai ser: “Nunca as ouvi. Não posso gostar daquilo que nunca ouvi”. Ao dar essa resposta, você enunciou a regra fundamental para se gostar de música: “O prazer vem do ouvir. Quem nunca ouviu não pode gostar”. Mas não é qualquer ouvir. É um ouvir especial.
Contei-lhe das minhas noites com meu filho pequeno, deitado no meu colo, pedindo-me que colocasse no toca-discos a Pequena serenata noturna de Mozart. Pediu porque gostava dela. Gostava dela porque a tinha ouvido antes. Imagine agora que eu, amante da música, me propusesse um programa de educação musical para o meu filho, com hora e lugar marcados. “Meu filho, são nove horas da manhã. Hora de ouvir música. Deixe os seus brinquedos! Hoje vamos ouvir a Pequena serenata noturna”. É possível que ele me obedecesse e ouvisse. Mas estaria dizendo por dentro: “Droga, logo agora que o brinquedo estava tão bom…”
A música é um pássaro em voo. É no seu voo que ela é bela. Não é possível prendê-la para aprendê-la. Música engaiolada, em sala de aula, com hora marcada, é coisa feia, até mesmo a Pequena serenata noturna de Mozart. Para o meu filho, a Pequena serenata noturna era mais do que ela: era a cena, a sala na penumbra, o meu colo, a estória que eu iria contar.
Aprende-se o prazer da música da mesma forma como a criança aprende o prazer de falar! Como eu gostava de falar quando era pequeno! Uma vez meu irmão me pagou uma pratinha de dois mil réis para ficar calado por dez minutos. Fiquei. Mas senti-me tão ofendido que, transcorridos os dez minutos, recusei-me a falar. O meu silêncio causou grande aflição nos circunstantes, que me pagaram outra pratinha de dois mil réis para falar de novo…
Como é que se aprende a falar? Não sei. O fato é que quem ensina a falar não sabe que está ensinando e quem aprende não sabe que está aprendendo. Há coisas que só se aprendem se não se sabe que está aprendendo e que só se ensinam quando não se percebe que se está ensinando. A língua se aprende da mesma forma como se respira. É parte da vida. Imagine agora que houvesse um ensino científico da língua: aula dos substantivos, aula dos adjetivos, aula dos verbos, aula de sintaxe, hora da verificação, hora das reprovações… Nunca aprenderíamos a falar! O mesmo vale para a música. Há de se aprender a música da mesma forma como se respira, da mesma forma como se aprende a falar, sem lugar certo, sem hora certa. Não há hora certa para ouvir o sopro dos ventos, o canto dos pássaros, o farfalhar das folhas nas árvores, o murmurar dos regatos, o barulho da chuva. A música são objetos sonoros que criamos como companheiros da música da natureza, para acrescentar-lhes uma beleza diferente, saída de dentro de nós. É preciso viver no meio dela como vivemos no meio dos ventos, dos pássaros, das árvores, dos regatos, da chuva…
Tenho um amigo que é apaixonado por Vivaldi. Ele mora sozinho. Quando em casa, ele escuta Vivaldi o dia inteiro. Uma senhora cuida da sua casa. Um dia ele se preparava para sair com o seu carro seminovo quando o marido da dita senhora chegou com seu carro velho: uma Brasília. Aconteceu, entretanto, que a bateria do seminovo pifou. O marido da empregada lhe ofereceu carona no seu carro velho. Já dentro da Brasília o marido lhe perguntou: “Posso colocar um CD?” “Mas é claro”, ele respondeu, temeroso da música que teria de ouvir. E o que se ouviu foi… Vivaldi! Ante seu rosto espantado, sua auxiliar explicou: “Acho tão bonitas as músicas que o senhor escuta. Fui ver o nome: Vivaldi. Agora também nós ouvimos Vivaldi…” Meu amigo ensinou sem saber que estava ensinando…
A música nos retira dos nossos pequenos mundos e nos faz viajar por mundos maravilhosos. Isso desperta em nós as potências eróticas dos nossos ouvidos. Os ouvidos passam a fazer amor com a música em inumeráveis posições… O canto gregoriano, a música barroca, a música clássica, a romântica, a impressionista, o jazz, a música sertaneja: todas essas são formas diferentes de gozar auditivamente. Pena é que haja pessoas que gozam de um jeito só. É como se, diante da enorme variedade de pratos em um bufê, a pessoa comesse sempre a mesma coisa: arroz, feijão, batata frita e bife…
A educação da nossa sensibilidade musical deveria ser um dos objetivos da educação. Os conhecimentos da ciência são importantes. Eles nos dão poder. Mas eles não mudam o jeito de ser das pessoas. A música, ao contrário, não dá poder algum. Mas ela é capaz de penetrar na alma e de comover o mundo interior da sensibilidade onde mora a bondade. Afinal, esta não deveria ser a primeira tarefa da educação: produzir a bondade?
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[crônica do livro]
Rubem Alves, no livro ‘Educação dos Sentidos e mais‘. Campinas/SP: Verus, 2011
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