– À nova democracia chilena!
– À nova era! – acompanhou-a Sara.
– A todas as mulheres do mundo – acrescentei rindo –
E a nós quatro, suas dignas representantes.
(Marcela Serrano – Nós que nos amávamos tanto)

Pego meu café no fim da tarde de domingo e me preparo para saber por onde andam Sira Quiroga e Rosalinda Fox. Que novas aventuras e guerras encaram? Quais sublevações políticas e bailes têm frequentado? Surpreendo-me, com alguma felicidade, ao me dar conta que busco o romance na mesa de cabeceira curiosa pela vida das duas amigas. Em Sira, evidentemente, eu pensaria. Ela é a protagonista do “Tempo entre Costuras”, folhetim desses que não deixa a gente parar de ler da Maria Dueñas. Já Mrs. Fox é uma das outras personagens que mexe e remexe com a vida de Sira Quiroga da Espanha ao Marrocos. Não terminei ainda para saber os desfechos, nem quereria aqui conta-los (quão mais graça tem a vida com suspense!), mas a proximidade e amizade das duas é, definitivamente, algo que levarei desse romance tão movimentado e absorvente.

A amizade entre mulheres tem sido uma marca das últimas obras que li, aliás. Acabei de reler as “Memórias de uma moça bem comportada”, da Simone de Beauvoir, e, das duas vezes, chorei, emocionada, com sua profunda e fundamental relação com Zaza. Identifiquei, nela, tantas companheiras de estudo e vida que me provocaram e constituíram sem que, por vezes, eu tenha conseguido perceber ou expressar o quanto foram fundamentais para quem eu sou. Mas Simone o soube, e disse – por mim e para mim. Também penso em Floreana e Elena, do “Albergue das Mulheres Tristes” e sua conturbada troca e crescimento conjunto. Eu, que sempre me senti tão Floreana, enxerguei em tantas mulheres mais velhas ou mais pacificadas que eu com os desmandos do mundo Elenas que me foram nortes e colos para os desencontros da vida.

Ai, são tantas: na dolorida leitura de “Hibisco Roxo”, o desenvolvimento gradual da amizade de Amaka e Kambili – e como isso fortalece Kambili para as dores dentro e fora que ela tinha que enfrentar; como Celie e Shug Avery se salvam mutuamente e se descobrem em tantos sentidos na “A Cor Púrpura”; para não falar(ainda não consegui falar profundamente sobre depois do fim da série), a parceria de toda uma vida – com todos os percalços que parcerias e vidas têm – de Lila e Lenu, na Série Napolitana.

Embora tenha sido só puxar o fio do novelo das minhas leituras recentes para chegar a uma lista linda e múltipla de amizades entre mulheres, não sinto que esse tenha sido o forte da maior parte das narrativas de toda minha vida. Revisitando mentalmente alguns dos meus autores favoritos, não me ocorre nenhuma relação entre mulheres tão forte, tão fundamental. Talvez algumas – mais familiares – entre as tantas solidões de García Marquez. Joana Parda e Maria Guavaira terminam por muito se gostarem quando a jangada de Saramago se lança aos mares, mas as relações principais são com os pares masculinos. Também em Kundera as mulheres vez ou outra se protegem, mas pouco se relacionam verdadeiramente. São sempre relações laterais, pontuais, menos importantes.

Por que nas minhas leituras recentes as relações de afeto entre mulheres pululam entre tantas e tão diversas autoras enquanto não consigo me lembrar de nenhuma exatamente marcante em tantos livros devorados por anos a fio na vida? A resposta pode parecer meio simplista, mas ainda assim é evidente: porque comecei a ler mais obras escritas por mulheres. No imaginário corrente masculino as mulheres só se relacionam entre si, basicamente, para brigar por homens, falar sobre homens, orbitar em torno deles. As suas relações autônomas não são complexas, não tem nuances, mal passam pelo afeto. Boas ou ruins, são rasas. Não merecem grande espaço narrativo. Não à toa o “teste de Bechdel” passa justamente por aí: ver se existe mais de uma mulher na trama e se as duas conversam sobre algo que não seja um homem. E quase nenhum dos grandes filmes que vimos a vida toda passa nele.

Constituir-se enquanto mulher assim, é óbvio, marca profundamente a forma como nos vemos no mundo e, sobretudo, como vemos as mulheres a nossa volta. Embora nos relacionemos o tempo todo com mulheres, de modo tão complexo, constitutivo e, no mais das vezes, fantástico, é como se a essa relação sempre faltasse uma legitimidade. Uma representação. Quando a gente se apaixona por um homem, nossa, o que não falta na vida é casal modelo para se espelhar (embora, convenhamos, escolher Romeu e Julieta ou é falta de conhecimento literário ou é um certo masoquismo nesse conceito de grad amour). Dois homens amigos? Ô, o que não falta é referencial. Podem ser Frodo e Sam salvando a Terra Média, Poirot e o capitão Hastings desvendando mais um caso ou todo bando de Pedro Bala nos “Capitães de Areia”. Entre homens e mulheres são mais raras, mas vá lá que ainda há alguma, embora quase sempre termine com um “na verdade era o início de uma grande paixão” – de novo, não somos passíveis de amizade, mas aí é motivo para outro texto. Uma especial nesse sentido é a de Harry, Rony e Hermione em toda saga de Harry Potter. Mas, há, voltamos ao ponto: a saga é escrita por uma mulher.

A falta de referenciais de relações saudáveis entre mulheres nos forja para que só signifiquemos com complexidade e beleza as nossas relações com homens, o que não só é cruel e limitador como, sobretudo, é falso. Mulheres – como todos os seres humanos, acredito – relacionam-se umas com as outras em todo emaranhado de afetos, partidas, lealdades, traições, desentendimentos e reinvenções. Um rápido olhar em torno basta, aqui, para comprovações empíricas. O fato das relações femininas terem sido sempre narradas por um olhar externo e – dentro da dinâmica de mundo que a gente vive – viciado, marca totalmente a forma como elas existem na literatura. E nesse círculo eterno de realidade e arte, a forma como existimos nós.

Há algum tempo tenho dito insistentemente que precisamos ler mulheres. Muitas vezes me perguntam: por que, faz alguma diferença? Bom, para mim o simples fato de separar os livros na estante e me dar conta da brutal desproporção de autores e autoras já era, em si, motivo suficiente. Se mulheres escrevem desde sempre – Safo tá aí pra me dar um exemplo histórico – e têm romances maravilhosos, por que nossos clássicos são só escritos por homens? Será que tem a ver com serem homens que dizem o que é bom? Um doce para quem solucionar o enigma.

Mas, para além disso, ou justamente dentro disso, percebo hoje que a parte mais importante de ler mulheres é que mulheres possam existir no nosso imaginário de forma mais complexa, completa, profunda. Que as múltiplas e incríveis formas de seres humanos se relacionarem incluam, dentro do nosso rol de personagens, mulheres que são sujeitas de afetos, não só objetos de paixão. Mulheres que conversam entre si sobre o que quer que seja – até mesmo seus parceiros, escrevem, salvam a Espanha, salvam a Galáxia, brigam por ninharias, brigam pela sucessão do trono e por aí vai. Quero poder querer ser Floreana, Elena, Lila, Lenu, Celie, e quantas outras como cresci querendo ser Sancho e Dom Quixote, ter um amigo leal como Sam, dizer “elementar” para alguém como Watson (Sherlock nunca disse nos livros de Doyle, mas vale pela imagem). Ter uma personagem para chamar de minha, me ver nela, me reinventar nela.

Falando nisso, já é tempo de pegar de volta o café e voltar para Sira e Rosalinda…

Mariana Imbelloni Braga, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em História pela UFF, em Direito pela PUC-Rio e mestranda em Direito pela PUC-Rio, dedica-se desde 2009 aos estudos de gênero nas duas áreas.

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