De Aquidauana, sul avante, senso inverso, entramos a rodar as etapas da Retirada da Laguna.

Esplanada. Macaubeiras. Até pretas, ou amarelas, tostadas pela geada, as bananeiras se retardam. Vai o verde veloz pelos cerrados, alto, baixo, sujo, limpo. Dá-se uma estrada arenosa, ver vermelha. No monótono, subimos as últimas horas da manhã e descambamos o meio-dia, ora mais que um divortium umbrarum, que mero divisor-de-sombras. O sol iça a paisagem, e os campos bailam, rugosos, na luz. Vamos na serra do Amambaí, vertente do poente. E, contra o planalto recurvo, o céu tombado, súbito estacamos.
Nioaque é aqui.

Dentro do céu, casas velhas, espaçadas, encerram um território remoto, entre rua, praça, campo ou clareira; mais árvores, e caía-lhe a palavra “horto”, que o ar sugere, ou “largo”, “estância”, “paragem”, “logradouro”. Sem o repicado gloriolar matinal, sobem uns cantos de galos, se desenrolam, como penachos de sono. Diáfano dia montês, em que tudo se alisou de repente, mais mansa a transição entre verdura e brancura. Talvez a menos sul-grossense, das povoações de Mato Grosso, Nioaque se vê madura e estática, qual um burgo goiano. Há de limitar-se com qualquer país de névoa acima, da ordem também dos mais claros.

Envelhecem, neste redor, as ferrenhas furiadas — pilhagem, massacre, incêndios. A História se rarefaz. O que ficou plantado foi um marco votivo: entre mangueiras e palmeiras, cercaram um gramado retangular, em que pedras amarelas inscrevem um losango. O “jardim”. Semelha singela bandeira nacional, horizontalmente estendida: a terra, como símbolo da bandeira. Toda Nioaque o prolonga. E, bem-aventurança afetuosa da cidade, levamos Camisão, Pisaflores, José Thomaz, o chefe tereno Francisco das Chagas, a negra Ana, preta de bondosa, e os doentes, fiados a Deus num espaço da mata — o mundo.

Dever seu, a seu modo, os lanceiros de Urbieta também pagavam multa mortal ao hombre malo de Assunção. Seus descendentes, os netos de suas mulheres, formam grande gente, presença e vizinhança. Já em Campo Grande aportam risos do Paraguai em pares de olhos escuros, mal avistados, e no ritmo das polcas e guaranias. “Paraguayita linda”! — toa uma harpa, entre guitarras. Compra-se o nhanduti — fios de amido e amor, rijo aranhol constelado, espuma em estrias. As fajas coloridas prendem as armas, como enfeites. E espalham-se os puytãs — os ponchos de sarja escarlate — que transitam, contra horizontes e céus, como fúcsias enormes, amadurecendo um vaqueiro num cardeal, pingando de sangue o planalto, nas léguas instantâneas da paisagem, ou acendendo no verde do Pantanal tochas vagantes.

Distamos ainda, verdade, da zona de osmose, onde nos falará uma língua bizarra, com vogais tecladas; dos exércitos de ervateiros forasteiros, que povoam redutos de trabalho; das terras de tangência amorosa, em que os sangues diversos se influem; desse povo fronteiro, misto, que, cá e lá, valha chamarmos brasilguaios, num aceno de poesias.

Sempre a vista é a mesma: os estirões do caminho rubro, araxá pós araxá, léguas à régua, simples raspagem no terreno, que pouco ondula. Os coqueiros sobem de algum mar, os chapadões dão sono. Paramos, por causa de um tamanduá-bandeira, pardo, à borda da estrada, às 14h, 30. A pouco trecho, pulou uma veada, marrom, longa, fêmea de mateiro. De gente, raros; poucos trafegam nesta rodovia. Mal a espaços no ermo, um rancho de madeireiro, que o mato ameaça: de pau-a-pique as paredes, teto de uacuri; homens e mulheres que o dia santo reúne, à beira de foguinhos; exibem-se as redes de dormir; devem ser albergues de estoicos estas choupanas, ao gelo das madrugadas, na florada do frio. Macaúbas ciliciadas — folhagem em desleixo, rascunho de fronde — agarram seus cachos de cocos. Uma fumaça. Cerca de esteios cruzados, mandiocal, roça miúda. Outras cabanas que o capim coifa — sapé velho, prata; sapé novo, ouro. Um mastro, que tem de ser mais alto que as árvores, com a bandeira: “Viva São João Batista!”— Inevitável, o pau-a-pique, incapaz de chegar a reles taipa-de-sebe. — Por que não barreiam? — “Água por aqui, só a légua e meia…” Com a sobrelégua, o que há é uma paineira morta, em que três bandos de periquitos se dão encontro, remexendo suas sombras no capim de outra choça, mais primitiva que um tejupar. E o não feio rio Miranda, se unindo com o Santo Antônio: o pontal dos dois, redondo de copas, afina uma quilha, querendo insinuar-se debaixo da ponte. Depois, barrancos, pastos, gados. Aí-pererê forte: um gavião, que vai, que volta. Surgem casas, com soldados. Baixamos na Fazenda Jardim — a “estância do Jardim”— para jantar e pernoite, com a noite nos laranjais. Comissão de estradas de Rodagem nº 3 — “Neste mundão, os hóspedes distraem a gente…” — recebe-nos o Capitão Ivan Wolf.

Julho, 16, conforme nos diários dos viajantes. O frio à frente, reenfiamos a rota, depois de um desvio de sessenta e quatro quilômetros, para ir ver o “Buracão do Perdido”. Consta que em Ponta Porã tem feito cinco sob zero, mas a massa-polar passou também por aqui. Muita flora, crestada, entrou em outono. O sol anda como uma aranha. No Patrimônio Boqueirão, vai haver festa. Na frente das casas, armaram “ramadas” cobertas ou alpendres à moda dos “cines” ou “corredores” paraguaios, para as danças. Nossas plagas, agora economicamente melhores, atraem os paraguaios, que trazem sua cultura, inteiriça.

Para a banda de lá, onde há escolas e colégios, passam os meninos brasileiros. O Paraguai, individualizado, talvez já pronto, é extravazante; o Brasil, absorvente, digeridor, vai assimilando todos os elementos, para se plasmar definitivamente. Às vezes, aqui ou ali, há refluxos. O Território, por exemplo, rebrasileirou, de repente, muita coisa. Onde antes só se bebia mate e se bailava ao som da polca e do santa-fé, passaram a tomar café e dançar samba. “O Paraguai está recuando…” — dizia alguém, jovialmente, como se comentasse uma partida de esporte. Mas tudo se passa num estilo harmonioso, convivente. Em Dourados, uma mulher mostra seu filho, menino teso como um guaicuru: — “Paraguayo, no, Brasilerito!…”

Nos acenam. Mas já estamos na mata virgem. — “Tem muita onça, nesta serra de Maracaju…” — informa um conserveiro. Paus de abraço, ou finos troncos ósseos, entre o verde de cima e o verde de baixo, da copagem coesa. Vai rendada a cumeeira, quase nuvens, e às vezes o bafo de sêmen nos engloba, com a sua úmida murmuração. Passamos e admiramos, perlongando-a. E, quando a mata cessa, destravada, tombamos num campo cheio de surpresa. As emas, muitas, arquitetônicas, incrivelmente aves, cinzentos dromedários encolhidos. Trotam elas, batendo cascos. Uma ergue élitros indébitos para o voo, outras agitam as caudas-cabeleiras azulantes. Rebanhos de emas, misturando-se com o gado nas pastagens, caravanas de emas, cada uma com sua ema-chefe, guarda-bando. Fogem, pelos campos altos, que adornam, esveltas, as palmeiras bocaiúvas. Por cima delas, passa um urubu-caçador, turco de tarbuche, deitado no vento sudoeste, nadador. E esta savana, que cortamos a modo diametral, parece um parque onde as emas, domésticas, se multiplicam. Dali se sai por uma avenida de taquaras, de arcos enfolhados. Cintila o rio Machorra, com sua mata em galeria. E — km 296 — quando a paz é mais própria, nos choframos com um posto-de-vigilância, brasileiro.

Um bambu seco, atravessado no mata-burro; quatro barracas, alinhadas; três soldados e um cabo, cavalarianos. Um deles se adianta. Da revolução, acha apenas que “é uma lástima”… No seu modo, com ar de cumpridor, soa sincero. A guerra civil, em casa alheia, sempre tem qualquer coisa de anacrônico; em nossa casa, de prematuro.

Aparece o primeiro cinamomo às portas de Bela Vista. Da brasileira, porque do outro lado do rio está a outra, a paraguaia, a Bella Vista, rebelde e de armas empunhadas, armas aliás bem sucintas: cerca de 300 homens, cujo maior material of-e-defensivo são algumas metralhadoras de mão, onomatopaicas peripipis. Vinte e mais léguas a leste, beiradeando a divisória, fica Pedro Juan Caballero, metade meridional de uma cidade — cuja outra meia é a nossa Ponta Porã —, e nódulo legalista. Lá, os soldados do Governo seriam por uns 200, mas dispondo de alguns morteiros de campanha, fogo de pobre. Guerra linear, sobre essa linha, marcada pelas patrulhas voltantes, prontas a se espingardearem à caçadora.

Estão contando que um moço militar, de Nhu Verá ou de Horqueta, começou a achar enfado na luta do Ipanê, e preferiu indulgir em peripécias próprias: desertou barulhentamente, chocou-se com as rondas, atravessou depois o território inimigo, sempre riscando de onça, requisitou comeres e bebederes, promoveu-se e condecorou-se a si próprio, e, chegando até a beirada do Brasil, cumprimentou e deu as costas, sem gosto para embrasileirar-se, e pois retornando à confusão. Trazia também um violão a tiracolo — acrescentam. E explicam que o violão, para o paraguaio, é arma de combate e ferramenta de lavoura. Se verdadeira, bela é a história, se imaginada, ainda mais.

E em Bela Vista só estão internados três ou quatro legalistas, que, por se afoitarem mais em terreno “blanco”. Alguém discorda, reticente: — “Paraguaio, amigo, é bicho letrado. Não tem nenhum paraguaio sonso, não…”
Da Vila Militar, contemplamos as duas Belas Vistas — como livro pelo meio aberto — lisas, onduladas de-ligeiro. Oblíqua, corre para dentro do Paraguai uma crista azulada, no fundo.

Por aqui passou, no cavalo baio, José Francisco Lopes, o Guia, mineiro de Pium-i, de sertões exatos e da tenência e transatos, da lealdade e da força. Por ele conduzidos e nutridos do seu gado, vieram os homens da expedição, para vinda e volta — sob bandeiras, serra acima, boi berrante. Té hoje, aqui, manda a pecuária. — “Em Bela Vista, tudo é gado…” — um sulano instrui-nos. — “O quilo é treis mil-réis do lado de cá, do lado de lá é dois…” — já em solilóquio acrescenta.

A cidade se atravessa nos três minutos, com um olhar para a casa que foi do matador de gente Silvino Jacques, por causa de quem ainda há mulheres de luto, das duas bandas.

Na barranca do Passo da Alfândega acampa um destacamento: as barracas de lona verdiamarela; os cavalos por perto, comendo de bornais; um sargento e quinze praças — um grupo-de-combate, reforçado, do Regimento Antonio João. O Apa, cor de folha, mostra seus seixos rolados no fundo. Verdadeiro e formoso, como Taunay o tratou.

Duas ou três canoas se aprestam. Em tempo de paz, aqui funcionava uma balsa; mais abaixo, no Passo do Macaco, os caminhões cruzam sem dano, em quadra de vazante. Tem um cinturão grande, com o escudo estelar na fivela, o moço Martin Yara, nome mesmo para canoeiro.

— Vostê é revolucionário?

Martin Yara se entesa e endeda o V da vitória, sério, como se pusesse alguma pajelança nessa arma simbólica, importada para nossos arsenais pastoris. De pé, à proa, firma a zinga e impele a canoa, que se esgueira, ele gondolente. Como paraguarani de bom tronco, despreza pavonadas de boca e garganta, deixando para mais horas a valentia.

Aos ouvidos desse povo, mesmo às boas frases respeitáveis suscitam-se desproporções. Por ver, uma professora ensinava o “Independência ou Morte!” com a necessária ênfase, quando um garoto arregalou sinceramente os olhos e pulou no banco, exclamando: — “A la putcha, Señorita!”

Mais sua mulherzinha, um joão-de-barro se avança, sobrevoa o rio. De Minas para aqui, crismaram-no de “massa-barro”; mas, vez na outra margem, ele se re-poetiza: alonso, alonsito, alonso ponchito; mais adentro, voltará a profissional: el hornero.

Passa a canoa, para meia dúzia de casas avistadas, e dois soldados sem armas, sentinelas amistosas. Esdrúxulo, um sobrado de meia-água. Aportamos. Os cinamomos estão iguais, mas são mbocayás as bocaiúvas.
Subimos vinte passos, e entra-se por larga rua relvada — a Calle Mariscal Estigarribia. Transitam vacas, com universal bondade, nos cangotes longas forquilhas. Uma, salina-cirigada, retrocede, por espanto. Crescem cores no céu. O mesmo berro das vacas. Um sino toca, no colégio dos padres norte-americanos. Tranquilidade, remansidão. Muitas casas estão fechadas — os legalistas donos longe, no Brasil pertinho. Um grupo de oficiais vem ao nosso encontro. Estamos ingressando no Paraguai pela porta-da-cozinha.

O capitão Eliseu Duarte Britos — Jefe de la Plaza — é moreno e encorpado, estampa autóctone, deve provir do sêmel de caciques.

O major Rufino Pampliega — Comandante Geral do Setor — claro, corpudo, mas velazquiano. Seus modos revelam um esgrimista; olhar e fronte os de estrategista. Casquete com o V blanco, blusa de couro, pistola à cinta, bombachas com frisos casa-de-abelha, botas de fole, e aprumo palaciego.

Fala da tropa — simples organizaciones de montonera — aguerridíssima.

O capitão Duarte Britos termina, socialíssimo: “Nos imporemos pelas armas.”
Enquanto a noite subiu, com estrelas subitâneas. Temos de voltar à Bela Vista nossa. Trevas, na rua. Um lampião foca círculo diurno, em que sorriem várias jovens, abraçadas, nenhuma sem encantos. Acorrem os homens atraídos. Oficiais, soldados, paisanos. Um sobraça o mbaracá, de seis cordas. Ladeiam-no dois outros, com cavaquinhos. Surge, do escuro, uma cadeira, para o solista apoiar o pé. Alguém segura a luzinha de querosene. O violão se desfere, e uma polca irrompe alegre, laçadora. Clamam-se aplausos, bilíngues, trilíngues. E uma moça alva feliz, Chiquita ou Amparo, canta a canção do coração louco — “Corazó taroba”…

No outro dia, toda a viagem, essa música pousará como um pássaro roxo em nosso ombro; nela persiste o marulho composto do Apa, saltado à primeira hora, e o trinar da calândria amorosa, que desordena perspectivas na manhã. Ponta Porã, até lá, delongam-se os campos; rei deles, o barba-de-bode, curvado como se ventos o acamassem, cada tufo um porco-espinho. O percurso é agreste, uniforme. Os bichos restarão dentro dos matos. Apenas, a complexa máquina cochilante de uma carreta, com os bois bojadores, o carreteiro a cavalo, sustendo a picana. Na Colônia Penzo, um destacamento afugenta os quatreiros, deixando que os desbravadores labutem em paz, por um favor da guerra. Sobe-se, com a mata repentina, uma vertente serrana.

As nuvens gostam de pousar no canto sueste do céu, os gaviões preferem as árvores secas. De novo, o descampado. Arvoretas inéditas querem agrupar-se em bosques: é a erva-mate, que começa. Tocamos a “linha seca” da fronteira. A estrada coleia por entre os postes de demarcação, que intervisíveis vão mundo adiante, plantados em montículos. De repente, os cavaleiros. Dois. Depois, três. Muitos. Vêm mudos, sopesando as hastas, com lenços vermelhos. São lanceiros colorados, cavalaria legalista; patrulha, ou flanqueadores de uma coluna maior, que se movimenta para oeste. Alto de Maracaju. Na mesa de uma planada, vestida de frio novo, Ponta Porã, a bonita.

A cidade. As cidades — dimidianas, germinadas, beira-fronteira —: ora deserta cerrada a Pedro Juan Caballero, num relento de eremitério e guerra. Vacas e cavalos pastam o capim da Avenida Internacional, o boulevard limitante. Ponta Porã freme, de expectação, mais vida, solidária assistência.
Só partíamos, mas um menino engraxate sorrindo-nos cantava, de inesquecer-se:

Allá en la orilla del rio
una doncella
bordando pañuelo de oro
para la Reina
para la Reina…

Deixava-se o Paraguai — país tão simpático, que até parece uma pessoa.
Volvendo norte, passa por nosso derradeiro olhar a cidadezinha ainda de Sanga Puytã, à borda de um campo com cupins e queimadas, arranchada entre árvores que o vento desfolha. Diz-se que sua área é menos que a do cemitério. Apenas a gente pensa que a viagem foi toda para recolher esse nome encarnado molhado, coisa de nem vista flor.

– João Guimarães Rosa, no livro “Ave, palavra”. 6ª ed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

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