Escritor, poeta, filósofo, psicanalista, teólogo, professor… um degustador de vida
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Há uma estória que não me canso de repetir, e a cada vez que o faço, pássaros selvagens passam voando bem alto.” Esse é Rubem Alves – o contador de histórias que aponta para a realidade que passa ao lado enquanto lemos suas palavras.
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Por isso é tão difícil ler um livro dele sem observar o que está acontecendo no instante presente, pois Rubem sempre nos convida a parar e saborear o cheiro de café que vem da cozinha, contemplar o capim seco se encharcando de chuva e acompanhar o voo das borboletas azuis que passeiam pela praça como almas pequeninas.

É como se ele estivesse sempre muito próximo de nossos ouvidos sussurrando “carpe diem”, aproveite o dia, e “tempus fugit”, o tempo foge. Ao falar sobre suas feridas e dores, ele nos faz lembrar nossas próprias dores e feridas. E, no seu relato sobre o êxtase do amor, desperta nossos mais queridos anseios ou recordações.
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Com naturalidade, desfia a história medieval de Abelardo e Heloísa para se referir à força erótica dos amores impossíveis. Ou ensina às mulheres o segredo de seduzir pela palavra e pela fantasia, como Sherazade, da qual nada se sabe sobre a beleza ou as habilidades na cama, mas tudo sobre o poder de encantamento ao contar suas histórias ao sultão durante mil e uma noites.
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Amante dos livros, ao escolher poemas e trechos dos textos dos autores que lhe são caros, entramos num universo paralelo onde se multiplicam bem escolhidas citações. Nelas, o poeta japonês Bashô falará da “casca oca da cigarra que cantouse toda no verão”. A poesia de Fernando Pessoa, da brisa nos ramos de uma árvore que diz “uma imprecisa coisa feliz”.

Ou Cecília Meirelles, que nos fará imaginar o amor doce com que choramos “ao lembrar de quem fomos no tempo antigo”. As questões da alma, e de Deus, que ele encontra mais bem revelado nos homens e na natureza, também percorrem as páginas de suas mais de 120 obras.

Teólogo com doutorado na Universidade Princeton, nos Estados Unidos, e com o protestantismo como religião de origem, ele é, como outro teólogo famoso, Leonardo Boff, um libertário, um herege em relação ao formalismo das religiões. E, tanto quanto os assuntos do espírito, os temas que envolvem a educação também lhe tocam a alma.
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Rubem Alves é uma referência entre os professores, por sua abertura e suas reflexões, que ele propõe sempre de maneira muito simples. Perguntado sobre como tinha educado seus filhos, respondeu de modo singelo: “Não os eduquei. Apenas vivi com eles”.
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Por tudo isso, entrevistar Rubem Alves, que tivemos o privilégio de acompanhar de novembro de 2004 a fevereiro de 2009 em ‘Bons Fluídos’ com sua coluna Conversa com o Sábio, é um desafio. Nesta entrevista Rubem nos fala aqui do sentido que podemos atribuir a vida, amor, sofrimento, compaixão e crianças. Como escreveu, “tudo o que é belo deseja uma repetição”.

Entrevista concedida a Liane Alves (Revista Exame/Estilo de Vida, em 13 de junho 2013)
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Recentemente você enfrentou uma série de problemas de saúde. Foi possível aprender algo com eles?
Algumas pessoas acreditam que todas as coisas têm um propósito, como se Deus estivesse regendo este mundo aqui. Eu não acredito nisso. Se acreditasse, odiaria Deus. Pois as desgraças que acontecem são de tal ordem, que eu perguntaria: “Deus, onde estás?” E diria a Ele, caso esse Deus existisse: “Eu não acredito em Ti, que pena… Se Tu existisses mesmo, isso não aconteceria”. Então eu amo um Deus que não existe. (risos)
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Mas as doenças não poderiam nos tornar mais humanos?
Ou mais raivosos. Não quero aprender nenhuma lição dessa forma, por meio das doenças. De jeito nenhum. Para quê? O que vou fazer com isso? Mas também posso lhe dizer que com elas eu me tornei extremamente mais sensível às pessoas que sofrem. Por exemplo, tenho um amigo de 60 anos, escritor, bonito, que sofreu um derrame.
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Ele está deitado na cama, não consegue falar, mas está lúcido. Então ligo para ele, peço que a esposa dele segure o fone e converso sem parar. Ele só escuta ou dá risadas. Com as doenças, comecei a prestar muito mais atenção no sofrimento dos outros.

Essa sensibilidade pode ser traduzida pela compaixão?
A palavra compaixão é composta de com + paixão, e paixão quer dizer sofrimento. É sentirmos dentro de nós o sofrimento do outro. Isto é, ao olhar para aquela pessoa que está sofrendo, eu, que não sofro, passo a sentir o sofrimento dela. É a gente se colocar no lugar do outro. Essa é uma das grandes coisas que infelizmente não se ensinam na escola.

A educação sempre foi uma grande paixão na sua vida. Como a encara agora?
Com desânimo. É impressionante como se gasta dinheiro com bobagens nas escolas. Por exemplo, ensinar a palavra dígrafo (pessoa que sabe escrever com as duas mãos). O que uma criança vai fazer com a palavra dígrafo?
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Outro exemplo de bobagem é o vestibular. Minha filha, quando se preparava para o exame e precisava aprender sobre as causas da Guerra dos Cem Anos ou o resultado do cruzamento genético entre um coelho preto e outro branco, me perguntou desesperada: “Pai, para que aprender tudo isso?”
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E eu respondi: “Filha, essa é a regra. Quando você aprender tudo isso, mas tudo mesmo, daí você poderá esquecer”. Alguém se lembra dessas coisas irrelevantes que teve de aprender para passar no vestibular? Quem se recorda das regras genéticas que comandam o cruzamento entre um coelho preto e um branco?

O que melhorou e o que piorou no ensino nas últimas décadas?
A Unesco preparou um documento com os quatro itens essenciais que deveriam fazer parte da educação. O número 1 é aprender a aprender. Não é aprender o que foi aprendido ou aprender o que uma pessoa me ensina, é aprender por mim mesmo. O segundo item é o aprender a fazer. Por exemplo, como usar ferramentas para fazer coisas. O terceiro, aprender a conviver, e você sabe como a violência nas escolas hoje é algo terrível… O último, muito importante, aprender a ser.

Qual escola cumpre esses quatro itens hoje?
Na verdade, ninguém sabe o que fazer. Acho que nossa conversa está ficando meio tristonha, não é? Talvez seja sua fase hoje… [O poeta austríaco Rainer Maria] Rilke fala que os pássaros no começo da manhã voam para todos os lados, em todas as direções, fazendo mil coisas. Mas, ao cair da tarde, só têm uma direção e destino: a volta ao lar. Aí não tem mais conversa ou dispersão. Eu estou voltando ao lar.

Você é meio amargo, não é?
Eu sei disso. Mas, nos meus momentos mais tristes, recebo um e-mail, uma carta – ainda recebo cartas, sabe?, essa coisa anacrônica que ninguém mais usa – que me fazem muito bem… Outro dia abri o envelope e vi aquela letrinha de mulher mais velha.
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Ela me contou que não gostava de livros, mas certa vez estava passando por uma livraria e viu um título meu com nome esquisito: Ostra Feliz Não Faz Pérola [Editora Planeta]. Ela achou tão estranho que o comprou. E disse que foi inundada de alegria ao perceber que existia uma pessoa na vida que pensava como ela. (risos)

Exatamente porque você não fantasia em seus livros pode dar um olhar poético sobre a vida, mas não fantasioso…
Sim, é isso mesmo, não fantasio.

E por que uma ostra feliz não faz pérola?
Porque não dói. Você pode criar pérolas cultivadas. Para isso, é só colocar um grãozinho de areia dentro dela, no seu corpo, que ela começa a secretar um líquido para transformar o grão de areia numa bolinha, numa pérola. Todas as coisas belas que foram criadas no mundo foram feitas por pessoas que estavam sofrendo por algum motivo.
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Observe uma sinfonia de Beethoven… [no final da vida o compositor alemão ficou surdo, mas compunha músicas com as lembranças que tinha dos sons].
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Ele criou uma obra-prima para sofrer menos, para se proteger do sofrimento causado pelo grão de areia, que era sua surdez. As pessoas felizes não produzem pérolas, mas não tem importância, receberam esse presente da existência, então que gozem a vida, que gozem a vida… Elas não precisam produzir nada, podem deixar a tarefa de produzir a beleza para os que sofrem.

Para você, a vida tem um sentido, um significado?
Eu posso atribuir um sentido a ela, essa é a filosofia do existencialismo. Posso me comprometer a ajudar as crianças órfãs, os velhinhos abandonados etc. e, dessa forma, estou dando um sentido a ela. Eu posso dar um sentido a minha vida, mas achar que já vim com um destino traçado não, de jeito nenhum.

Acredita em reencarnação?
Para mim, um deus que usa a reencarnação para a evolução da humanidade está desacreditado por pura incompetência administrativa. É só olhar em volta o horror que acontece na Ásia, na Europa… Esse deus deveria é colocar ordem no mundo… Uma amiga kardecista gostaria que eu adotasse o ponto de vista do espiritismo.
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Mas não consigo, tenho até inveja e admiração de quem o adota. Mas, se eu pudesse reencarnar mesmo, gostaria de reencarnar para trás, no passado… Queria voltar a ser criança. Que graça tem ir para um futuro que eu não conheço?

Quais são suas lembranças de infância, o que você fazia?
Brincar. A gente criava o brinquedo, inventava. Agora todo mundo compra. Contei num livro para crianças como eram os meus dias de infância, sem tênis, celular, geladeira, com muito carrapato… Elas não tiveram o mínimo interesse. (risos) Sabe quem ficou curioso? Os velhos. (risos) Eles reencontraram sua infância, essa que não existe mais, a não ser em um cantinho muito perdido do Brasil…

Como despertar o amor pelos livros e pela música, suas grandes paixões?
Se aprende música ouvindo música. Se aprende a ler lendo. Não tem outro jeito. Não é fazendo exercícios de gramática, ela simplesmente deveria ser banida das escolas. O que você faz com uma análise sintática? Nada! Ela não estimula o amor pelos livros. Eu aprendi gramática lendo.
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Também pode se estimular esse interesse criando-se uma atmosfera adequada para isso, estimulando-se esse amor, seja na sala de aula ou não. E nisso a tecnologia pode ajudar: outro dia vi um festival de música em Dubrovnik, Croácia, pelo YouTube e uma senhora tocava violoncelo.
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Fiquei todo arrepiado e pensei: “Essa mulher é endemoniada. Como alguém pode tocar tão maravilhosamente desse jeito? Que coisa fantástica!” Quem ama música começa a prestar atenção nesses detalhes, vai descobrindo pouco a pouco. Também é possível despertar o interesse pelo exemplo, o filho vendo os pais lendo, essa cena clássica que pouco se nota hoje em dia.
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Ou aprende pelo ouvido, escutando as histórias dos livros que os pais leem para ele. Ou por um instante mágico. Uma vez passava de automóvel pela avenida Brasil quando parei num sinal e uma menina de uns 12 anos me esticou um panfleto de um lançamento imobiliário.
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Eu estava ouvindo música clássica e a menina inclinou a cabeça dentro do carro para escutar melhor. Ficou encantada. Antes que o sinal abrisse, ela me falou: “Então essa que era a música de antigamente…”.

Rubem, e o amor? Você escreveu tanto a respeito…
Vou lhe dar um livro sobre o amor, Cantos do Pássaro Encantado [Verus Editora]. Eu o escrevi com meu sangue. Nas primeiras páginas há uma reprodução de uma gota de sangue, que originalmente fiz furando o dedo e a editora mandou reproduzir. Junto dela tem uma frase de Nietzsche: “De tudo o que se escreveu, eu só amo aquilo que o homem escreveu com o próprio sangue”. Acho que dá a dimensão do que vivi do amor.
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Você fala de coisas difíceis, doloridas, duras, mas de uma forma gentil. Os leitores de ‘Bons Fluídos’ gostam demais dos seus textos e dos seus livros…
É isto que dá sentido a minha vida: saber que minhas palavras de alguma maneira podem ajudar alguém

Fonte: Revista Exame/Estilo de Vida

Saiba mais sobre Rubem Alves:
Rubem Alves – o aprendiz de feiticeiro
Rubem Alves (Crônicas, contos e afins)







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