Morte de um pássaro
(Réquiem para Federico García Lorca)

Ele estava pálido e suas mãos tremiam. Sim, ele estava com medo porque era tudo tão inesperado. Quis falar, e seus lábios frios mal puderam articular as palavras de pasmo que lhe causava a vista de todos aqueles homens preparados para matá-lo. Havia estrelas infantis a balbuciar preces matinais no céu deliqüescente. Seu olhar elevou-se até elas e ele, menos que nunca, compreendeu a razão de ser de tudo aquilo. Ele era um pássaro, nascera para cantar. Aquela madrugada que raiava para presenciar sua morte, não tinha sido ela sempre a sua grande amiga? Não ficara ela tantas vezes a escutar suas canções de silêncio? Por que o haviam arrancado a seu sono povoado de aves brancas e feito marchar em meio a outros homens de barba rude e olhar escuro?

Pensou em fugir, em correr doidamente para a aurora, em bater asas inexistentes até voar. Escaparia assim à fria sanha daqueles caçadores maus que o confundiam com o milhafre, ele cuja única missão era cantar a beleza das coisas naturais e o amor dos homens; ele, um pássaro inocente, em cuja voz havia ritmos de dança.

Mas permaneceu em sua atonia, sem acreditar bem que aquilo tudo estivesse acontecendo. Era, por certo, um mal-entendido. Dentro em pouco chegaria a ordem para soltá-lo, e aqueles mesmos homens que o miravam com ruim catadura chegariam até ele rindo risos francos e, de braços dados, iriam todos beber manzanilla numa tasca qualquer, e cantariam canções de cante-hondo até que a noite viesse recolher seus corpos bêbados em sua negra, maternal mantilha.

As ordens, no entanto, foram rápidas. O grupo foi levado, a coronhadas e empurrões, até a vala comum aberta, e os nodosos pescoços penderam no desalento final. Lábios partiram-se em adeuses, murmurando marias e consuelos. Só sua cabeça movia-se para todos os lados, num movimento de busca e negação, como a do pássaro frágil na mão do armadilheiro impiedoso. O sangue cantava-lhe aos ouvidos, o sangue que fora a seiva mais viva de sua poesia, o sangue que tinha visto e que não quisera ver, o sangue de sua Espanha louca e lúcida, o sangue das paixões desencadeadas, o sangue de Ignácio Sánchez Mejías, o sangue das bodas de sangre, o sangue dos homens que morrem para que nasça um mundo sem violência. Por um segundo passou-lhe a visão de seus amigos distantes. Alberti, Neruda, Manolo Ortiz, Bergamín, Delia, María Rosa – e a minha própria visão, a do poeta brasileiro que teria sido como um irmão seu e que dele viria a receber o legado de todos esses amigos exemplares, e que com ele teria passado noites a tocar guitarra, a se trocarem canções pungentes.

Sim, teve medo. E quem, em seu lugar, não o teria? Ele não nascera para morrer assim, para morrer antes de sua própria morte. Nascera para a vida e suas dádivas mais ardentes, num mundo de poesia e música, configurado na face da mulher, na face do amigo e na face do povo. Se tivesse tido tempo de correr pela campina, seu corpo de poeta-pássaro ter-se-ia certamente libertado das contingências físicas e alçado vôo para os espaços além; pois tal era sua ânsia de viver para poder cantar, cada vez mais longe e cada vez melhor, o amor, o grande amor que era nele sentimento de permanência e sensação de eternidade.

Mas foram apenas outros pássaros, seus irmãos, que voaram assustados dentro da luz da antemanhã, quando os tiros do pelotão de morte soaram no silêncio da madrugada.
– Vinicius de Moraes, em “Poemas esparsos”. [organização Eucanaã Ferraz]. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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Face of Garcia Lorca in the Form of a Fruit Dish with Three Figs, 1938 – by Salvador Daly

“Só o mistério nos faz viver. Só o mistério”
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“Solo el misterio nos hace vivir. Solo el misterio”
– García Lorca, no “Romancero Gitano”, em ‘Obra poética completa. Federico García Lorca’. [tradução, seleção e apresentação de William Agel de Melo]. Edição bilíngue. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo | Brasília: Editora UnB, 2004.

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Federico García Lorca

O assassinato de Federico García Lorca

No front político, o fascismo alargava suas bases. A guerra civil era inevitável. Em meados de julho, durante um jantar na casa de Pablo Neruda, o deputado do Partido Socialista, Fulgencio Díez Pastor, aconselhou Lorca a desistir do seu intento de ir para Granada. Melhor seria permanecer em Madri, onde estaria mais seguro. Outros amigos aconselharam-no a sair do país.

No dia 14 de julho, chegou a Granada. E no dia 23 a cidade rendeu-se aos rebeldes. Os republicanos mais notórios foram presos. Lorca, temendo o pior, decidiu buscar refúgio entre amigos, instalando-se na casa de Luis Rosales, cujos irmãos, José e Antonio, eram membros da Falange.

No dia 15 de agosto, um grupo anti-republicano, com a incumbência de deter o poeta, dirigiu-se à Huerta de San Vicente munido de uma ordem de prisão. No dia 16, Manuel Fernández-Montesinos, cunhado de Lorca, foi fuzilado sumariamente junto com outros prisioneiros. No mesmo dia, outro grupo, liderado por Ramón Ruiz Alonso, conseguiu localizar Lorca na mansão dos Rosales. José Rosales fez de tudo para salvar o poeta. Obteve uma ordem de soltura do governador militar, coronel Antonio González Espinoza, e aprestou-se a levá-la ao governador civil, Valdés Guzmán, que a rechaçou, sob a alegação de que Lorca não mais se encontrava aí – o que não era verdade. Na madrugada de 17 ou 18 de agosto, o poeta foi executado, juntamente com Dióscoro Galindo Gonzáles, Joaquín Arcollas Cabezas e Francisco Galadi Melgar.
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