Já não é de hoje que a temática da autonomia surge em minhas colaborações para a Prosa, Verso e Arte. Na última coluna, novamente, o assunto surgiu. Entendo que esse seja um assunto para refletirmos ainda que parceladamente por isso hoje, começo essa reflexão partindo do olhar foucaultiano sobre o corpo na sociedade de controle.

Em “O corpo utópico”, Michel Foucault discorre longamente sobre o corpo e afirma que “meu corpo é o lugar irremediável a que estou condenado”, tratando-se de “pequeno fragmento de espaço com o qual, em sentido estrito, eu me corporizo”. Existir prescinde, corolariamente, abrigar-se em um corpo. Historicamente o corpo sofreu, de variadas e duras formas, pressões do poder em razão da necessidade de trabalho excessivo e restrições de ordem moral vinculadas à religiosidade que, não raro, associavam o corpo ao pecado. Com a finalidade de evitar a degradação do corpo, potencial fonte de pecado, exerceu-se forte controle sobre o mesmo objetivando, ainda, que ele se mantivesse produtivo.

Nesse sentido, em “Segurança, Território e População”, Foucault apresenta a polícia e define como um dos seus objetivos o bom uso das forças do Estado, bem como, fazer com que estas aumentem tanto quanto seja possível. As forças do Estado que se pretendem aumentar passam fortemente pela capacidade produtiva de sua população, de modo que, a “a educação e a profissão, a profissionalização dos indivíduos; a educação que deve formá-los, de maneira que possam ter uma profissão” também é incumbência da polícia. “Logo, temos todo um conjunto de controles, de decisões, de injunções que tem por objeto os próprios homens (…) o objetivo da polícia é, portanto, o controle e a responsabilidade pela atividade dos homens na medida em que essa atividade possa constituir um elemento diferencial no desenvolvimento das forças do Estado.”

Este olhar demasiado atencioso ao corpo de cada indivíduo que integra o seio social se viabiliza através da estatística, elemento imprescindível sob a ótica da biopolítica, já que permite conhecer detalhadamente a população. Para Foucault a “estatística é o saber do Estado sobre o Estado”. Com o advento da modernidade, observa-se, como acima exposto, que a coerção exercida sobre o corpo pauta-se em um saber racional e científico.

No pensamento foucaultiano temos que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições e obrigações”. Tal assertiva evidencia a clara existência de micropoderes que perpassam todo o corpo social e a conduta dos indivíduos que o formam. Esses micropoderes é que consolidam o corpo social, através de coação calculada de cada corpo, em algo fabricado, automatizado e esquadrinhado detalhadamente. Nesse sentido, elucida o Professor Sergio Rodrigues:

“Os hábitos diários repetidos de forma imperceptível, mas que vão lentamente adestrando os corpos. Este poder capilar não parte do Estado, como um poder central, para se espalhar pelas partes da sociedade até chegar aos seus membros individuais. Não se trata de um poder derivado de um poder maior, mas, muito pelo contrário, de um poder que está na realidade mais concreta e cotidiana dos indivíduos. (…) Este poder significa o controle diário, sistemático, repetitivo e minucioso do comportamento cotidiano do corpo de cada um. O micropoder não tem uma ação exclusivamente negativa e proibitiva, mas ele é, principalmente, exercido de uma forma construtiva. Ele produz positivamente comportamentos e corpos através de classificações, normatizações e adestramentos.”

A organização das prisões na idade moderna será o modelo de funcionamento da sociedade contemporânea através do qual Foucault irá analisar a maneira com que os micropoderes incidem na vida dos indivíduos que compõem o seio social. Foucault pontua que a prisão não só atua com fito de punir, mas, através de uma série de normas disciplinares, educar e formar o corpo do prisioneiro. Deste modo, com seus inúmeros dispositivos disciplinares a prisão pretendia reeducar o corpo imprevisível e desviante do delinqüente, o sujeito a se corrigir, transformando um corpo desviante em um corpo produtivo para a sociedade- atendendo, por exemplo, a histórica demanda de trabalho. Contudo, as normas disciplinares tão marcantes neste contexto não são exclusividade dele, posto que também presentes nas escolas, nas forças armadas e nos hospitais, exemplos mais evidentes da aplicação da disciplina, difundida por toda a sociedade.

Em “Vigiar e Punir” encontramos importante marco da obra foucaultiana relacionada ao corpo. Para Foucault “é dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” .O corpo, deste modo, é trabalhado não como uma massa, mas algo que sofre coerção contínua de modo a equipará-lo ao nível da mecânica para alcançar a eficácia dos seus movimentos. O trabalho empreendido com fito de alcançar essa pretensão é feito através do poder disciplinar.

Na obra “Em Defesa da Sociedade”, FOUCAULT (2010) afirma que “a disciplina tenta reger a multiplicidade dos homens na medida em que essa multiplicidade pode e deve redundar em corpos individuais que devem ser vigiados, treinados, utilizados, eventualmente punidos”. A disciplina, portanto, impõe uma relação de docilidade-utilidade ao dissociar o poder do corpo, reduzindo, em termos políticos de obediência, sua força ao passo que aumenta, em termos econômicos de utilidade, sua força. “A disciplina fabrica indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício.” Sobre a disciplina no pensamento foucaultiano interessa-nos, especialmente, que ela molda os corpos dos indivíduos e atribui-lhes características de docilidade tornando, como acima exposto, o corpo útil e produtivo quando do aumento de sua submissão. Trata-se, portanto, de uma verdadeira política de coerções, minuciosa, com fito de controlar e estabelecer modelos de atitudes, comportamentos e gestos que, não raro, influencia também na própria produção de subjetividade daqueles que encontram-se sujeitos ao exercício do poder disciplinar.

Desse modo, podemos concluir que o corpo é o lugar em que as microrrelações de dominação se dão e agem como forma de controle dos indivíduos; é o corpo, dócil, o objeto de manipulação das disciplinas, que visam alcançar a normalização e regularização destes, para que alcancem determinados objetivos políticos.

O sujeito e seu corpo são constituídos através de tecnologias de saber, poder e de si (tecnologias do eu). Sendo assim, os indivíduos fazem não o que desejam e sim aquilo que lhes é permitido dentro da posição que ocupam perante a sociedade e de sua submissão às instituições sociais e políticas, sem que gozem de verdadeira liberdade e autonomia.

*Anna Carolina Cunha Pinto, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte, escreve sobre suas percepções do mundo associando-as com conteúdos de Filosofia e Sociologia. Formada em Direito pela Universidade Cândido Mendes, mestranda em Sociologia e Direito pela UFF e apaixonada por filosofia.

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