Diz-me, poeta…
[a Haroldo de Campos *]
.
Diz-me, poeta, o que fazes? — Eu canto.
Porém a morte e todo o desencanto,
como os suportas e aceitas? — Eu canto.
O inominado e o anônimo, no entanto,
como os consegues nomear? — Eu canto.
Que direito te faz, em qualquer canto,
máscara ou veste, ser veraz? — Eu canto.
Como o silêncio dos astros e o espanto
dos raios te conhecem?: — Porque eu canto.
.
.
O sage, Dichter…
O sage, Dichter, was du tust? — Ich rühme.
Aber das Tödliche und Ungetüme,
wie hältst du’s aus, wie nimmst du’s hin? — Ich rühme.
Aber das Namenlose, Anonyme,
wie rufst du’s, Dichter, dennoch an? — Ich rühme.
Woher dein Recht, in jeglichem Kostüme,
in jeder Maske wahr zu sein? — Ich rühme.
Und daß das Stille und das Ungestüme
wie Stern und Sturm dich kennen?: — Weil ich rühme.
– Rainer Maria Rilke, em “Quatro Poemas Esparsos” (1924). In: Coisas e anjos de Rilke – Augusto de Campos [organização e tradução]. 2ª edição, São Paulo: Perspectiva, 2013.
O original é dedicado a Leonid Zacharias, Muzot, 20 de dezembro de 1921.
A tradução, a Haroldo de Campos, que em seu primeiro livro, O Auto do Possesso (1950), usou como epígrafe o verso inicial, assim traduzido por ele: “Dize-me, ó poeta, o que fazes? Eu celebro. “

§

O fruto
Subia, algo subia, ali, do chão,
quieto, no caule calmo, algo subia,
até que se fez flama em floração
clara e calou sua harmonia.
Floresceu, sem cessar, todo um verão
na árvore obstinada, noite e dia,
e se soube futura doação
diante do espaço que o acolhia.
E quando, enfim, se arredondou, oval,
na plenitude de sua alegria,
dentro da mesma casca que o encobria
volveu ao centro original.
.
.
Die frucht
Das stieg zu ihr aus Erde, stieg und stieg,
und war verschwiegen in dem stillen Stamme
und wurde in der klaren Blüte Flamme,
bis es sich wiederum verschwieg.
Und fruchtete durch eines Sommers Länge
in dem bei Nacht und Tag bemühten Raum,
und kannte sich als kommendes Gedränge
wider den teilnahmsvollen Raum.
Und wenn es jetzt im rundenden Ovale
mit seiner vollgewordnen Ruhe prunkt,
stürzt es, verzichtend, innen in der Schale
zurück in seinen Mittelpunkt.
– Rainer Maria Rilke, em “Quatro Poemas Esparsos” (1924). In: Coisas e anjos de Rilke – Augusto de Campos [organização e tradução]. 2ª edição, São Paulo: Perspectiva, 2013.

§

O mundo estava no rosto
O mundo estava no rosto da amada –
e logo converteu-se em nada, em
mundo fora do alcance, mundo-além.
Por que não o bebi quando o encontrei
no rosto amado, um mundo à mão, ali,
aroma em minha boca, eu só seu rei?
Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.
Mas eu também estava pleno de
mundo e, bebendo, eu mesmo transbordei.
.
.
Welt war in dem Antlitz
Welt war in dem Antlitz der Geliebten —,
aber plötzlich ist sie ausgegossen:
Welt ist draußen, Welt ist nicht zu fassen.
Warum trank ich nicht, da ich es aufhob,
aus dem vollen, dem geliebten Antlitz
Welt, die nah war, duftend meinem Munde ?
Ach, ich trank. Wie trank ich unerschöpflich.
Doch auch ich war angefüllt mit zu viel
Welt, und trinkend ging ich selber über.
– Rainer Maria Rilke, em “Quatro Poemas Esparsos” (1924). In: Coisas e anjos de Rilke – Augusto de Campos [organização e tradução]. 2ª edição, São Paulo: Perspectiva, 2013.

§

O
sobressalto
em todos os pássaros soando.
Ouve! os tênues degraus do canto
e ao alto:
sus
penso
sustém-se
o desejo e o coração mais intenso
vence o (no espaço imenso)
silêncio:
da luz.
.
.
O
das Proben
in allen Vögeln geschiehts.
Horch, die kleine Treppe des Lieds,
und oben:
noch nichts
doch
der Wille
so groß schon und größer das Herz;
sein Wachsen im Raume unendlish gewährts
die Stille:
des Lichts.
– Rainer Maria Rilke, em “Quatro Poemas Esparsos” (1924). In: Coisas e anjos de Rilke – Augusto de Campos [organização e tradução]. 2ª edição, São Paulo: Perspectiva, 2013.

§

Alceste
Súbito o mensageiro apareceu
e se infiltrou em meio aos acepipes
do banquete nupcial, novo ingrediente.
Ninguém notou a oculta intromissão
do deus, que carregava a divindade
como um manto molhado nos seus ombros,
e a eles pareceu um como tantos,
quando passava. Porém, de repente,
no meio da conversa, um dos convivas
viu o jovem esposo, à cabeceira,
como que arrebatado para o alto,
e, ao lado, resplendente, o vulto pleno
do estranho que, terrível, lhe falava.
Então tudo foi claro e houve um momento
de calma: só alguns poucos detritos
de ruídos cavos e um precipitar
de balbúcios cadentes, corrompidos,
e risos abafados circunstantes.
E eles reconheceram o deus ágil
que, imbuído da missão, ali restava,
implacável. E quase compreenderam.
Mas quando ouvido, pareceu fugir
à compreensão aquém do entendimento.
Ele deve morrer, Admeto. Quando?
Agora. Este, porém, fez em destroços
a crosta do terror e ergueu a ele
as mãos, como a deter o mensageiro.
Anos, um ano só de juventude,
um mês, uma semana, um par de dias,
ah! dias não, uma só noite, uma,
uma noite, uma noite apenas: esta.
O deus negava. Então gritou Admeto,
gritou a ele, sem cessar, gritou
como sua mãe gritou ao procriá-lo.
E ela se apresentou, a velha dama,
e o pai veio também, o velho pai,
os dois anciões, decrépitos, perplexos,
ante o clamor desse que, como nunca
tão íntimo, irrompeu, entre soluços:
Pai,
o que te prende a este restos de vida,
resíduos que mal podes engolir?
Vá, deixa-os ir. E tu, velha senhora?
Mãe,
que fazes ainda aqui? Já procriaste.
E aos dois como a uma rês sacrifícial
jungiu. Logo, porém, os desprendeu.
numa súbita inspiração, arfante,
desesperado, aos gritos: Kréon, Kréon!
Nada mas aditou a esse nome.
Mas em seu rosto lia-se outra coisa
que não ousou dizer quando, expectante,
o olhar em fogo procurou o jovem,
do outro lado da mesa conturbada.
Os velhos (bem se vê) não dão resgate,
são gastos, maltratados, sem valor,
diante de alguém, no auge da beleza –
Mas não viu mais o seu querido amigo,
que se afastou. E quem veio foi ela,
algo menor do que ele a conhecera,
pálida e triste nas vestes nupciais.
Os outros não são nada mais que a estrada
que ela percorre (em pouco ele a terá
em seus braços, que se abrem, dolorosos).
Enquanto a espera, ela fala; não
a ele, mas ao deus que, atento, a escuta,
e todos a ouvem através do deus:
Ninguém pode substituí-lo. Eu só.
Eu sou a substituta. Pois ninguém
perde mais do que eu. O que me resta
se aqui ficar? A morte já está em mim.
Ela não lhe contou, ao enviá-lo,
que esse leito que dentro me aguardava
pertence ao outro mundo? Eu disse adeus,
adeus após adeus.
Ninguém que morre o disse mais. Já fui,
e tudo o que, sepulto, jaz com esse
que é o meu marido, se desfaz, se esvai –.
Leve-me então: eu morro em seu lugar.
E como o vento que no mar se expande,
assim o deus colheu a quase morta
e a levou para longe do marido
a quem deixou, com gesto indiferente,
as cem vidas que a terra oferecia.
Vacilante, ele cambaleou para ambos,
mãos estendidas, como se um sonho.
Mas já estavam na entrada onde as mulheres,
juntas, choravam. Ele ainda viu
a jovem, que voltou a sua face,
com um sorriso claro como a aurora,
uma promessa, quase despertar
da escuridão da morte para ele,
o vivo –
Então, Admeto, ajoelhado,
cobriu o rosto com as duas mãos
para nada mais ver além desse sorriso.
.
.
Alkestis
Da plötzlich war der Bote unter ihnen,
hineingeworfen in das Überkochen
des Hochzeitsmahles wie ein neuer Zusatz.
Sie fühlten nicht, die Trinkenden, des Gottes
heimlichen Eintritt, welcher seine Gottheit
so an sich hielt wie einen nassen Mantel
und ihrer einer schien, der oder jener,
wie er so durchging. Aber plötzlich sah
mitten im Sprechen einer von den Gästen
den jungen Hausherrn oben an dem Tische
wie in die Höh gerissen, nicht mehr liegend,
und überall und mit dem ganzen Wesen
ein Fremdes spiegelnd, das ihn furchtbar ansprach.
Und gleich darauf, als klärte sich die Mischung,
war Stille; nur mit einem Satz am Boden
von trübem Lärm und einem Niederschlag
fallenden Lallens, schon verdorben riechend
nach dumpfem umgestandenen Gelächter.
Und da erkannten sie den schlanken Gott,
und wie er dastand, innerlich voll Sendung
und unerbittlich, – wußten sie es beinah.
Und doch, als es gesagt war, war es mehr
als alles Wissen, gar nicht zu begreifen.
Admet muß sterben. Wann? In dieser Stunde.
Der aber brach die Schale seines Schreckens
in Stücken ab und streckte seine Hände
heraus aus ihr, um mit dem Gott zu handeln.
Um Jahre, um ein einzig Jahr noch Jugend,
um Monate, um Wochen, um paar Tage,
ach, Tage nicht, um Nächte, nur um Eine,
um Eine Nacht, um diese nur: um die.
Der Gott verneinte, und da schrie er auf
und schrie’s hinaus und hielt es nicht und schrie
wie seine Mutter aufschrie beim Gebären.
Und die trat zu ihm, eine alte Frau,
und auch der Vater kam, der alte Vater,
und beide standen, alt, veraltet, ratlos,
beim Schreienden, der plötzlich, wie noch nie
so nah, sie ansah, abbrach, schluckte, sagte:
Vater,
liegt dir denn viel daran an diesem Rest,
an diesem Satz, der dich beim Schlingen hindert?
Geh, gieß ihn weg. Und du, du alte Frau,
Matrone,
was tust du denn noch hier: du hast geboren.
Und beide hielt er sie wie Opfertiere
in Einem Griff. Auf einmal ließ er los
und stieß die Alten fort, voll Einfall, strahlend
und atemholend, rufend: Kreon, Kreon!
Und nichts als das; und nichts als diesen Namen.
Aber in seinem Antlitz stand das Andere,
das er nicht sagte, namenlos erwartend,
wie ers dem jungen Freunde, dem Geliebten,
erglühend hinhielt übern wirren Tisch.
Die Alten (stand da), siehst du, sind kein Loskauf,
sie sind verbraucht und schlecht und beinah wertlos,
du aber, du, in deiner ganzen Schönheit –
Da aber sah er seinen Freund nicht mehr.
Er blieb zurück, und das, was kam, war sie,
ein wenig kleiner fast als er sie kannte
und leicht und traurig in dem bleichen Brautkleid.
Die andern alle sind nur ihre Gasse,
durch die sie kommt und kommt –: (gleich wird sie da sein
in seinen Armen, die sich schmerzhaft auftun).
Doch wie er wartet, spricht sie; nicht zu ihm.
Sie spricht zum Gotte, und der Gott vernimmt sie,
und alle hörens gleichsam erst im Gotte:
Ersatz kann keiner für ihn sein. Ich bins.
Ich bin Ersatz. Denn keiner ist zu Ende
wie ich es bin. Was bleibt mir denn von dem
was ich hier war? Das ists ja, daß ich sterbe.
Hat sie dirs nicht gesagt, da sie dirs auftrug,
daß jenes Lager, das da drinnen wartet,
zur Unterwelt gehört? Ich nahm ja Abschied.
Abschied über Abschied.
Kein Sterbender nimmt mehr davon. Ich ging ja,
damit das Alles, unter Dem begraben
der jetzt mein Gatte ist, zergeht, sich auflöst –.
So führ mich hin: ich sterbe ja für ihn.
Und wie der Wind auf hoher See, der umspringt,
so trat der Gott fast wie zu einer Toten
und war auf einmal weit von ihrem Gatten,
dem er, versteckt in einem kleinen Zeichen,
die hundert Leben dieser Erde zuwarf.
Der stürzte taumelnd zu den beiden hin
und griff nach ihnen wie im Traum. Sie gingen
schon auf den Eingang zu, in dem die Frauen
verweint sich drängten. Aber einmal sah
er noch des Mädchens Antlitz, das sich wandte
mit einem Lächeln, hell wie eine Hoffnung,
die beinah ein Versprechen war: erwachsen
zurückzukommen aus dem tiefen Tode
zu ihm, dem Lebenden –
Da schlug er jäh
die Hände vors Gesicht, wie er so kniete,
um nichts zu sehen mehr nach diesem Lächeln.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos Poemas – I” (1907). In: Coisas e anjos de Rilke – Augusto de Campos [organização e tradução]. 2ª edição, São Paulo: Perspectiva, 2013.

§

Abisag

1.

Sobre. Servos, seus Braços, Meninice,
Fizeram enlear no Corpo augusto,
De Bruços. Horas mortas, que Velhice!,
não podia reter o Medo e o Susto.

Virava, revirava, (Barba), o Rosto,
a cada Pio de Mocho. E todo o Meio
da noite distendia-se, disposto
a vê-la, Medo, e a envolvê-la, Anseio.

Tremeram as Estrelas, suas iguais,
um Sopro abriu, sagaz, o Cortinado,
(e um Ar insinuou-se perfumado)
atraindo os seus Olhos com Sinais.

Mas ela, ao Rei sombrio, fiel se prende
e, salva da pior das Noites, calma,
na Realeza fria a Pele estende,
virginalmente leve como uma Alma.

2.

Soberano sem Gozo em Dia vazio,
e sem Feitos, o Rei medita
em sua cadelinha favorita.
A Noite vem: arqueia-se no Frio
o Corpo de Abisag. Da Vida os Leitos
são Costas de má Fama, Orla maldita
sob a mortal Constelação dos Peitos.

Mas, versado em Mulher e seus Desejos,
julgava ver, às vezes, (Sobrancelhas),
uma boca suspensa, Flor sem Beijos
– e via: para as suas Lavras velhas
não se inclinava a Haste amorosa, langue.
Insone, via-se Mastim, Orelhas,
Buscando-se nas So(m)bras do seu Sangue.

.

Abisag

I

Sie lag. Und ihre Kinderarme waren
von Dienern um den Welkenden gebunden,
auf dem sie lag die süßen langen Stunden,
ein wenig bang vor seinen vielen Jahren.

Und manchmal wandte sie in seinem Barte
ihr Angesicht, wenn eine Eule schrie;
und alles, was die Nacht war, kam und scharte
mit Bangen und Verlangen sich um sie.

Die Sterne zitterten wie ihresgleichen,
der Duft ging suchend durch das Schlafgemach,
der Vorhang rührte sich und gab ein Zeichen,
und leise ging ihr Blick dem Zeichen nach – .

Aber sie hielt sich an dem dunkeln Alten,
und von der Nacht der Nächte nicht erreicht,
lag sie auf seinem fürstlichen Erkalten
jungfräulich und wie eine Seele leicht.

II

Der König saß und sann den leeren Tag
getaner Taten, ungefühlter Lüste
und seiner Lieblingshündin, der er pflag – ,
Aber am Abend wölbte Abisag
sich über ihm. Sein wirres Leben lag
verlassen wie verrufne Meeresküste
unter dem Sternbild ihrer stillen Brüste.

Und manchmal, als ein Kundiger der Frauen,
erkannte er durch seine Augenbrauen
den unbewegten, küsselosen Mund;
und sah: ihres Gefühles grüne Rute
neigte sich nicht herab zu seinem Grund.
Ihn fröstelte. Er horchte wie ein Hund
und suchte sich in seinem letzten Blute.
– Rainer Maria Rilke [tradução Décio Pignatari]. in: PIGNATARI, Décio. “Poesia Pois É Poesia 1950-2000”. Cotia, SP: Ateliê Editorial; Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2004, p. 257.
– Rainer Maria Rilke, Winter 1905/06, Meudon (Neue Gedichte, Abisag).

§

A canção do mendigo
Vou indo de porta em porta,
ao sol e à chuva, não importa;
de repente descanso o meu ouvido
direito em minha mão direita:
minha voz me soa imperfeita,
como se nunca a tivesse ouvido.

E já nem sei quem clama em meus ais,
eu ou outra pessoa.
Eu clamo por qualquer coisa à toa.
Os poetas clamam por mais.

Com os olhos eu fecho o meu rosto
e minha mão lhe serve de encosto
de modo que ele pareça
descansar. Para que não se esqueça
que eu também tenho um posto
para pousar a cabeça.

.

Das Lied des Bettlers
Ich gehe immer von Tor zu Tor,
verregnet und verbrannt;
auf einmal leg ich mein rechtes Ohr
in meine rechte Hand.
Dann kommt mir meine Stimme vor
als hätt ich sie nie gekannt.
Dann weiß ich nicht sicher wer da schreit,
ich oder irgendwer.
Ich schreie um eine Kleinigkeit.
Die Dichter schrein um mehr.
Und endlich mach ich noch mein Gesicht
mit beiden Augen zu;
wie’s dann in der Hand liegt mit seinem Gewicht
sieht es fast aus wie Ruh.
Damit sie nicht meinen ich hätte nicht,
wohin ich mein Haupt tu.
– Rainer Maria Rilke, em “O livro de imagens”(Paris, 12.6.1906). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 70-71.
– Rainer Maria Rilke, ‘Das Buch der Bilder'” (1906). in “Die stimmen, neun blätter mit einem titelblatt”.

§

A canção do cego
Sou cego – escutem – é uma maldição,
um contrassenso, uma contradição,
não é uma doença qualquer.
Eu ponho a mão no braço da mulher,
minha mão cinzenta no seu cinza gris,
e ela só me leva para onde eu não quis.
Vocês andam, volteiam e gostam de pensar
que fazem um som diferente em seu andar,
mas estão errados: eu sozinho
vivo e vozeio o vazio.
Trago comigo um grito sem fim
e não sei se é a alma ou são as entranhas
o que grita em mim.
Já cantaram esta canção? Ninguém o saberia,
ao menos não com este acento.
Para vocês uma luz nova todo dia
vem e aquece o claro aposento.
E de olhar a olhar passa aquela energia
que induz à indulgencia e ao alento.

.

Das lied des blinden
Ich bin blind, ihr draussen, das ist ein Fluch,
ein Widerwillen, ein Widerspruch,
etwas täglich Schweres.
Ich leg meine Hand auf den Arm der Frau,
meine graue Hand auf ihr graues Grau,
und sie fürht mich durch lauter Leeres.

Ihr rürht euch und rückt und bildet euch ein,
anders zu klingen als Stein auf Stein,
aber ihr irrt euch: ich allein
lebe und leide und lärme.
In mir ist ein endloses Schrein,
und ich weiss nicht, schreit mir mein
Herz oder meine Gedärme.

Erkennt ihr die lieder? Ihr sanget sie nicht,
nicht ganz in dieser Betonung.
Euch kommt jeden Morgen das neue Licht
warm in die offene Wohnung.
Und ihr habt ein Gefühl von Gesicht zu Gesicht,

und das verleitet zur Schonung.
– Rainer Maria Rilke, em “O livro de imagens”. In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013.
– Rainer Maria Rilke, ‘Das Buch der Bilder'” (1906). in “Die stimmen, neun blätter mit einem titelblatt”.

§

A Gazela
(à Gazella Dorcas)

Mágico ser: onde encontrar quem colha
duas palavras numa rima igual
a essa que pulsa em ti como um sinal?
De tua fronte se erguem lira e folha

e tudo o que és se move em similar
canto de amor cujas palavras, quais
pétalas, vão caindo sobre o olhar
de quem fechou os olhos, sem ler mais,

para te ver: no alerta dos sentidos,
em cada perna os saltos reprimidos
sem disparar, enquanto só a fronte

a prumo, prestes, pára: assim, na fonte,
a banhista que um frêmito assustasse:
a chispa de água no voltear da face.

.

Die Gazelle
(Gazella Dorcas)

Verzauberte: wie kann der Einklang zweier
erwählter Worte je den Reim erreichen,
der in dir kommt und geht, wie auf ein Zeichen.
Aus deiner Stirne steigen Laub und Leier,

und alles Deine geht schon im Vergleich
durch Liebeslieder, deren Worte, weich
wie Rosenblätter, dem, der nicht mehr liest,
sich auf die Augen legen, die er schließt:

um dich zu sehen: hingetragen, als
wäre mit Sprüngen jeder Lauf geladen
und schüsse nur nicht ab, solang der Hals

das Haupt ins Horchen hält: wie wenn beim Baden
im Wald die Badende sich unterbricht:
den Waldsee im gewendeten Gesicht.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas I” (1907). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 122-123.
– Rainer Maria Rilke, (17.7.1907, Paris). in “Neue gedichte – I” (1907).

§

A montanha
Trinta e seis vezes e mais outras cem
o pintor escreveu essa montanha,
devotado, sem êxito, à façanha
(trinta e seis vezes e mais outras cem)

de entender o vulcão que ele trazia,
feliz, mesmerizado, no seu peito,
mas a montanha de perfil perfeito
não lhe quis revelar sua magia:

doando-se do ar de cada dia,
mil vezes, cada noite cintilante
abandonando, como sem valia;
cada imagem imersa num instante,
em cada forma a forma transformada,
indiferente, distante, modesta —,
sabendo, como uma visão, do nada,
acontecer atrás de cada fresta.

.

Der Berg
Sechsunddreißig Mal und hundert Mal
hat der Maler jenen Berg geschrieben,
weggerissen, wieder hingetrieben
(sechsunddreißig Mal und hundert Mal)

zu dem unbegreiflichen Vulkane,
selig, voll Versuchung, ohne Rat, –
während der mit Umriss Angetane
seiner Herrlichkeit nicht Einhalt tat:

tausendmal aus allen Tagen tauchend,
Nächte ohne gleichen von sich ab
fallen lassend, alle wie zu knapp;
jedes Bild im Augenblick verbrauchend,
von Gestalt gesteigert zu Gestalt,
teilnahmslos und weit und ohne Meinung -,
um auf einmal wissend, wie Erscheinung,
sich zu heben hinter jedem Spalt.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas II” (1908). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 296-297.
– Rainer Maria Rilke, (Juli 1906 und 31.7.1907, Paris). in “Neue gedichte – II” (1908).

§

A morte do Poeta
Jazia. A sua face, antes intensa,
pálida negação no leito frio,
desde que o mundo, e tudo o que é presença,
dos seus sentidos já vazio,
se recolheu à Era da Indiferença.

Ninguém jamais podia ter suposto
que ele e tudo estivessem conjugados
e que tudo, essas sombras, esses prados,
essa água mesma eram o seu rosto.

Sim, seu rosto era tudo o que quisesse
e que ainda agora o cerca e o procura;
a máscara da vida que perece
é mole e aberta como a carnadura
de um fruto que no ar, lento, apodrece.

.

Der tod des Dichters
Er lag. Sein aufgestelltes Antlitz war
bleich und verweigernd in den steilen Kissen,
seitdem die Welt und dieses von ihr Wissen,
von seinen Sinnen abgerissen,
zurückfiel an das teilnahmslose Jahr.

Die, so ihn leben sahen, wußten nicht,
wie sehr er eines war mit allem diesen,
denn Dieses: diese Tiefen, diese Wiesen
und diese Wasser waren sein Gesicht.

O sein Gesicht war diese ganze Weite,
die jezt noch zu ihm will und um ihn wirbt;
und seine Maske, die nun bang verstirbt,
ist zart und offen wie die Innenseite
von einer Frucht, die an des Luft verdirbt.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas I” (1907). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 44-45.
– Rainer Maria Rilke, in “Neue gedichte – I” (1907).

§

A Pantera
(No Jardin des Plantes, Paris)

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.

.

Der Panther
(Im Jardin des Plantes, Paris)

Sein Blick ist vom Vorübergehn der Stäbe
so müd geworden,dass er nichts mehr hält.
Ihm ist, als ob es tausend Stäbe gäbe
und hinter tausend Stäben keine Welt.

Der weiche Gang geschmeidig starker Schritte,
der sich im allerkleinsten Kreise dreht,
ist wie ein Tanz von Kraft um eine Mitte,
in der betäubt ein grosser Wille steht.

Nur manchmal schiebt der Vorhang der Pupille
sich lautlos auf -. Dann geht ein Bild hinein,
geht durch der Glieder angespannte Stille –
und hört im Herzen auf zu sein.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas I” (1907). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 120-121.
– Rainer Maria Rilke, in “Neue gedichte – I” (1907).

§

Amo as horas noturnas
Amo as horas noturnas do meu ser em
que se me aprofundam os sentidos;
nelas fui eu achar, como em cartas velhíssimas,
já vivida a vida dos meus dias
e como lenda longínqua e superada.

Delas eu aprendi que tenho espaço
para uma segunda vida, vasta e sem tempo.

E por vezes me sinto como a árvore
que, madura e rumorosa, sobre uma campa
realiza o sonho que o menino foi
(em volta do qual apertam suas raízes quentes)
e perdeu em tristezas e canções.

.

Ich liebe meines Wesens Dunkelstunden
Ich liebe meines Wesens Dunkelstunden,
in welchen meine Sinne sich vertiefen;
in ihnen hab ich, wie in alten Briefen,
mein täglich Leben schon gelebt gefunden
und wie Legende weit und überwunden.

Aus ihnen kommt mir Wissen, daß ich Raum
zu einem zweiten zeitlos breiten Leben habe.

Und manchmal bin ich wie der Baum,
der, reif und rauschend, über einem Grabe
den Traum erfüllt, den der vergangne Knabe
(um den sich seine warmen Wurzeln drängen)
verlor in Traurigkeiten und Gesängen.
– Rainer Maria Rilke, em “Poemas, As elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu”. [tradução Paulo Quintela]. Lisboa: Edições Asa, 2001.
– Rainer Maria Rilke, stretch “Das Buch vom Mönchischen Leben” (1899). in “Das Stunden-Buch”.

§

Dançarina espanhola
Como um fósforo a arder antes que cresça
a flama, distendendo em raios brancos
suas línguas de luz, assim começa
e se alastra ao redor, ágil e ardente,
a dança em arco aos trêmulos arrancos.

E logo ela é só flama, inteiramente.

Com um olhar põe fogo nos cabelos
e com a arte sutil dos tornozelos
incendeia também os seus vestidos
de onde, serpentes doidas, a rompê-los,
saltam os braços nus com estalidos.

Então, como se fosse um feixe aceso,
colhe o fogo num gesto de desprezo,
atira-o bruscamente no tablado
e o contempla. Ei-lo ao rés do chão, irado,
a sustentar ainda a chama viva.
Mas ela, do alto, num leve sorriso
de saudação, erguendo a fronte altiva,

pisa-o com seu pequeno pé preciso.

.

Spanische Tänzerin
Wie in der Hand ein Schwefelzündholz, weiß,
eh es zur Flamme kommt, nach allen Seiten
zuckende Zungen streckt -: beginnt im Kreis
naher Beschauer hastig, hell und heiß
ihr runder Tanz sich zuckend auszubreiten.

Und plötzlich ist er Flamme, ganz und gar.

Mit einem Blick entzündet sie ihr Haar
und dreht auf einmal mit gewagter Kunst
ihr ganzes Kleid in diese Feuersbrunst,
aus welcher sich, wie Schlangen die erschrecken,
die nackten Arme wach und klappernd strecken.

Und dann: als würde ihr das Feuer knapp,
nimmt sie es ganz zusamm und wirft es ab
sehr herrisch, mit hochmütiger Gebärde
und schaut: da liegt es rasend auf der Erde
und flammt noch immer und ergiebt sich nicht -.
Doch sieghaft, sicher und mit einem süßen
grüßenden Lächeln hebt sie ihr Gesicht
und stampft es aus mit kleinen Füßen.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas I” (1907). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 158-159.
– Rainer Maria Rilke, (Juni 1906, Paris). in “Neue gedichte – I” (1907).

§

Exercícios ao piano
O calor cola. A tarde arde e arqueja.
Ela arfa, sem querer, nas leves vestes
e num é tudo enérgico despeja
a impaciência por algo que está prestes

a acontecer: hoje, amanhã, quem sabe
agora mesmo, oculto, do seu lado;
da janela, onde um mundo inteiro cabe,
ela percebe o parque arrebicado.

Desiste, enfim, o olhar distante; cruza
as mãos; desejaria um livro; sente
o aroma dos jasmins, mas o recusa
num gesto brusco. Acha que á faz doente.

.

Übung am Klavier
Der Sommer summt. Der Nachmittag macht müde;
sie atmete verwirrt ihr frisches Kleid
und legte in die triftige Etüde
die Ungeduld nach einer Wirklichkeit,

die kommen konnte: morgen, heute abend -,
die vielleicht da war, die man nur verbarg;
und vor den Fenstern, hoch und alles habend,
empfand sie plötzlich den verwöhnten Park.

Da brach sie ab; schaute hinaus, verschränkte
die Hände; wünschte sich ein langes Buch –
und schob auf einmal den Jasmingeruch
erzürnt zurück. Sie fand, dass er sie kränkte.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas II” (1908). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 276-277.
– Rainer Maria Rilke, (Herbst 1907, Paris, oder Frühjahr 1908, Capri). in “Neue gedichte – II” (1908).

§

Fonte romana
(Vila Borghese)

Duas velhas bacias sobrepondo
suas bordas de mármore redondo.
Do alto a água fluindo, devagar,
sobre a água, mais em baixo, a esperar,

muda, ao murmúrio, em diálogo secreto,
como que só no côncavo da mão,
entremostrando um singular objeto:
o céu, atrás da verde escuridão;

ela mesma a escorrer na bela pia,
em círculos e círculos, constante-
mente, impassível e sem nostalgia,

descendo pelo musgo circundante
ao espelho da última bacia
que faz sorrir, fechando a travessia.

.

Römische Fontäne
(Villa Borghese)

Zwei Becken, eins das andere übersteigend
aus einem alten runden Marmorrand,
und aus dem oberen Wasser leis sich neigend
zum Wasser, welches unten wartend stand,

dem leise redenden entgegenschweigend
und heimlich, gleichsam in der hohlen Hand,
ihm Himmel hinter Grün und Dunkel zeigend
wie einen unbekannten Gegenstand;

sich selber ruhig in der schönen Schale
verbreitend ohne Heimweh, Kreis aus Kreis,
nur manchmal träumerisch und tropfenweis

sich niederlassend an den Moosbehängen
zum letzten Spiegel, der sein Becken leis
von unten lächeln macht mit Übergängen.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas I” (1907). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 156-157.
– Rainer Maria Rilke, in “Neue gedichte – I” (1907).

§

Hora grave
Quem agora chora em algum lugar do mundo,
Sem razão chora no mundo,
Chora por mim.

Quem agora ri em algum lugar na noite,
Sem razão ri dentro da noite,
Ri-se de mim.

Quem agora caminha em algum lugar no mundo,
Sem razão caminha no mundo,
Vem a mim.

Quem agora morre em algum lugar no mundo,
Sem razão morre no mundo,
Olha para mim.

.

Ernste stunde
Wer jetzt weint irgendwo in der Welt,
ohne Grund weint in der Welt,
weint über mich.

Wer jetzt lacht irgendwo in der Nacht,
ohne Grund lacht in der Nacht,
lacht mich aus.

Wer jetzt geht irgendwo in der Welt,
ohne Grund geht in der Welt,
geht zu mir.

Wer jetzt stirbt irgendwo in der Welt,
ohne Grund stirbt in der Welt:
sieht mich an.
– Rainer Maria Rilke, em “O livro de imagens” (1902). [tradução Paulo Plínio Abreu em colaboração com o antropólogo alemão Peter Paul Hilbert]. Belém/Pará: Jornal Folha do Norte.
– Rainer Maria Rilke, in “Das Buch der Bilder” (1902).

§

Hortênsia Azul
Como um último verde em um pote de tinta
As folhas têm um tom áspero, seco , velho,
Sob umbelas em flor que um azul pinta
Do falso azul, que é o seu remoto espelho.

Tosco espelho sem luz, choroso e baço
Como que prestes a perder o tom postiço,
Como antigo papel de carta já sem viço,
Onde o amarelo, o roxo e o cinza deixam traço;

Desbotado como o avental de uma criança
Que não foi mais usado e agora só descansa:
Como uma vida breve que se extingue.

Mas de repente o azul quer como que viver de
Novo em alguma umbela e se distingue
Um comovente azul sorrir de verde.

.

Blaue Hortensie
So wie das letzte Grün in Farbentiegeln
sind diese Blätter, trocken, stumpf und rauh,
hinter den Blütendolden, die ein Blau
nicht auf sich tragen, nur von ferne spiegeln.

Sie spiegeln es verweint und ungenau,
als wollten sie es wiederum verlieren,
und wie in alten blauen Briefpapieren
ist Gelb in ihnen, Violett und Grau;

Verwaschenes wie an einer Kinderschürze,
Nichtmehrgetragenes, dem nichts mehr geschieht:
wie fühlt man eines kleinen Lebens Kürze.

Doch plötzlich scheint das Blau sich zu verneuen
in einer von den Dolden, und man sieht
ein rührend Blaues sich vor Grünem freuen.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas I” (1907). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013.
– Rainer Maria Rilke, in “Neue gedichte – I” (1907).

§

Morgue
Estão prontos, ali, como a esperar
que um gesto só, ainda que tardio,
possa reconciliar com tanto frio
os corpos e um ao outro harmonizar;

como se algo faltasse para o fim.
Que nome no seu bolso já vazio
há por achar? Alguém procura, enfim,
enxugar dos seus lábios o fastio:

em vão; eles só ficam mais polidos.
A barba está mais dura, todavia
ficou mais limpa ao toque do vigia,

para não repugnar o circunstante.
Os olhos, sob a pálpebra, invertidos,
olham só para dentro, doravante.

.

Morgue
Da liegen sie bereit, als ob es gälte,
nachträglich eine Handlung zu erfinden,
die mit einander und mit dieser Kälte
sie zu versühnen weiß und zu verbinden;

denn das ist alles noch wie ohne Schluß.
Wasfür ein Name hätte in den Taschen
sich finden sollen? An dem Überdruß
um ihren Mund hat man herumgewaschen:

er ging nicht ab; er wurde nur ganz rein.
Die Bärte stehen, noch ein wenig härter,
doch ordentlicher im Geschmack der Wärter,

nur um die Gaffenden nicht anzuwidern.
Die Augen haben hinter ihren Lidern
sich umgewandt und schauen jetzt hinein.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas I” (1907). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 114-115.
– Rainer Maria Rilke, in “Neue gedichte – I” (1907).

§

O cego
Ele caminha e interrompe a cidade,
que não existe em sua cela escura,
como uma escura rachadura
numa taça atravessa a claridade.

Sombras das coisas, como numa folha,
nele se riscam sem que ele as acolha:
só sensações de tato, como sondas,
captam o mundo em diminutas ondas:

serenidade; resistência –
como se à espera de escolher alguém, atento,
ele soergue, quase em reverência,
a mão, como num casamento.

.

Der blinde
Sieh, er geht und unterbricht die Stadt,
die nicht ist auf seiner dunkeln Stelle,
wie ein dunkler Sprung durch eine helle
Tasse geht. Und wie auf einem Blatt

ist auf ihm der Widerschein der Dinge
aufgemalt; er nimmt ihn nicht hinein.
Nur sein Fühlen rührt sich, so als finge
es die Welt in kleinen Wellen ein

eine Stille, einen Widerstand -,
und dann scheint er wartend wen zu wählen:
hingegeben hebt er seine Hand,
festlich fast, wie um sich zu vermählen.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas II” (1908). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2007.
– Rainer Maria Rilke, in “Neue gedichte – II” (1908).

§

Lamento de uma jovem
A inclinação que nos vem do passado,
quando crianças, sempre tão constante,
de sermos sós, era algo delicado;
para os demais era luta cada instante,
e cada qual tinha o seu lado,
o seu perto, o seu distante,
um chão, um cão, um quadro.

E eu ainda achava que a vida
nunca cessaria de doar,
e que é em nós mesmos nosso lar.
Não sou em mim a minha preferida?
O que é meu não há mais de ter confiança
e me entender como quando era criança?

Súbito, estou como entre alheios,
e em algo que me ultrapassa
a solidão se muda em mim,
quando, do alto dos meus seios,
meus sentimentos clamam por asas
ou por um fim.

.

Mädchen-Klage
Diese Neigung, in den Jahren,
da wir alle Kinder waren,
viel allein zu sein, war mild;
andern ging die Zeit im Streite,
und man hatte seine Seite,
seine Nähe, seine Weite,
einen Weg, ein Tier, ein Bild.

Und ich dachte noch, das Leben
hörte niemals auf zu geben,
dass man sich in sich besinnt.
Bin ich in mir nicht im Größten?
Will mich Meines nicht mehr trösten
und verstehen wie als Kind?

Plötzlich bin ich wie verstoßen,
und zu einem Übergroßen
wird mir diese Einsamkeit,
wenn, auf meiner Brüste Hügeln
stehend, mein Gefühl nach Flügeln
oder einem Ende schreit.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas I”. In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 94-95.
– Rainer Maria Rilke (1906), in “Neue gedichte – I” (1907)

§

O encantador de serpentes
Quando na praça, ondeando, o encantador
toca a flauta que embala e entorpece,
às vezes ele atinge ao seu redor
alguém, em meio à turba, e o adormece,

e o faz entrar no círculo da flauta,
que quer e quer e quer e vai e volta,
até que emerja a cabeça alta
do réptil, que do seu cesto se solta,

alternando tontura e lassidão,
o que expande e tensiona e o que represa —;
basta um olhar daquele indiano, então,
para infundir no outro uma estranheza

que te mata. Como se de repente
o céu caísse. De súbito estrias
racham-te o rosto. Há especiarias
na memória boreal e a tua mente

de nada serve. Inútil, a magia.
O sol fermenta, vêm febres ferventes,
os raios têm maléfica alegria
e o veneno cintila nas serpentes.

.

Schlangen-Beschwörung
Wenn auf dem Markt, sich wiegend, der Beschwörer
die Kürbisflöte pfeift, die reizt und lullt,
so kann es sein, da er sich einen Hörer
herüberlockt, der ganz aus dem Tumult

der Buden eintritt in den Kreis der Pfeife,
die will und will und will und die erreicht,
dass das Reptil in seinem Korb sich steife
und die das steife schmeichlerisch erweicht,

abwechselnd immer schwindelnder und blinder
mit dem, was schreckt und streckt, und dem, was löst -;
und dann genügt ein Blick: so hat der Inder
dir eine Fremde eingeflößt,

in der du stirbst. Es ist als überstürze
glühender Himmel dich. Es geht ein Sprung
durch dein Gesicht. Es legen sich Gewürze
auf deine nordische Erinnerung,

die dir nichts hilft. Dich feien keine Kräfte,
die Sonne gärt, das Fieber fällt und trifft;
von böser Freude steilen sich die Schäfte,
und in den Schlangen glänzt das Gift.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas II” (1908). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 246-247.
– Rainer Maria Rilke, im “Neue gedichte – II” (1908).

§

O homem que contempla
Vejo que as tempestades vêm aí
pelas árvores que, à medida que os dias se tomam mornos,
batem nas minhas janelas assustadas
e ouço as distâncias dizerem coisas
que não sei suportar sem um amigo,
que não posso amar sem uma irmã.

E a tempestade rodopia, e transforma tudo,
atravessa a floresta e o tempo
e tudo parece sem idade:
a paisagem, como um verso do saltério,
é pujança, ardor, eternidade.

Que pequeno é aquilo contra que lutamos,
como é imenso, o que contra nós luta;
se nos deixássemos, como fazem as coisas,
assaltar assim pela grande tempestade, —
chegaríamos longe e seríamos anônimos.

Triunfamos sobre o que é Pequeno
e o próprio êxito torna-nos pequenos.
Nem o Eterno nem o Extraordinário
serão derrotados por nós.
Este é o anjo que aparecia
aos lutadores do Antigo Testamento:
quando os nervos dos seus adversários
na luta ficavam tensos e como metal,
sentia-os ele debaixo dos seus dedos
como cordas tocando profundas melodias.

Aquele que venceu este anjo
que tantas vezes renunciou à luta.
esse caminha erecto, justificado,
e sai grande daquela dura mão
que, como se o esculpisse, se estreitou à sua volta.
Os triunfos já não o tentam.
O seu crescimento é: ser o profundamente vencido
por algo cada vez maior.

.

Der schauende
Ich sehe den Bäumen die Stürme an,
die aus laugewordenen Tagen
an meine ängstlichen Fenster schlagen,
und höre die Fernen Dinge sagen,
die ich nicht ohne Freund ertragen,
nicht ohne Schwester lieben kann.

Da geht der Sturm, ein Umgestalter,
geht durch den Wald und durch die Zeit,
und alles ist wie ohne Alter:
Die Landschaft, wie ein Vers im Psalter,
ist Ernst und Wucht und Ewigkeit.

Wie ist das klein, womit wir ringen,
was mit uns ringt, wie ist das groß;
ließen wir, ähnlicher den Dingen,
uns so vom großen Sturm bezwingen, –
wir würden weit und namenlos.

Was wir besiegen, ist das Kleine,
und der Erfolg selbst macht uns klein.
Das Ewige und Ungemeine
will nicht von uns gebogen sein.
Das ist der Engel, der den Ringern
des Alten Testaments erschien:
Wenn seiner Widersacher Sehnen
im Kampfe sich metallen dehnen,
fühlt er sie unter seinen Fingern
wie Saiten tiefer Melodien.

Wen dieser Engel überwand,
welcher so oft auf Kampf verzichtet,
der geht gerecht und aufgerichtet
und groß aus jener harten Hand,
die sich, wie formend, an ihn schmiegte.
Die Siege laden ihn nicht ein.
Sein Wachstum ist: Der Tiefbesiegte
von immer Größerem zu sein.
– Rainer Maria Rilke, em “O Livro das Imagens”, (1902).. [tradução Maria João Costa Pereira]. Lisboa: Relógio D’Água, 2005.
– Rainer Maria Rilke, in “Das Buch der Bilder” (1902).

§

O homem que lê
Eu lia há muito. Desde que esta tarde
com o seu ruído de chuva chegou às janelas.
Abstraí-me do vento lá fora:
o meu livro era difícil.
Olhei as suas páginas como rostos
que se ensombram pela profunda reflexão
e em redor da minha leitura parava o tempo. —
De repente sobre as páginas lançou-se uma luz
e em vez da tímida confusão de palavras
estava: tarde, tarde… em todas elas.
Não olho ainda para fora, mas rasgam-se já
as longas linhas, e as palavras rolam
dos seus fios, para onde elas querem.
Então sei: sobre os jardins
transbordantes, radiantes, abriram-se os céus;
o sol deve ter surgido de novo. —
E agora cai a noite de Verão, até onde a vista alcança:
o que está disperso ordena-se em poucos grupos,
obscuramente, pelos longos caminhos vão pessoas
e estranhamente longe, como se significasse algo mais,
ouve-se o pouco que ainda acontece.

E quando agora levantar os olhos deste livro,
nada será estranho, tudo grande.
Aí fora existe o que vivo dentro de mim
e aqui e mais além nada tem fronteiras;
apenas me entreteço mais ainda com ele
quando o meu olhar se adapta às coisas
e à grave simplicidade das multidões, —
então a terra cresce acima de si mesma.
E parece que abarca todo o céu:
a primeira estrela é como a última casa.

.

Der lesende
Ich las schon lang. Seit dieser Nachmittag,
mit Regen rauschend, an den Fenstern lag.
Vom Winde draußen hörte ich nichts mehr:
mein Buch war schwer.
Ich sah ihm in die Blätter wie in Mienen,
die dunkel werden von Nachdenklichkeit,
und um mein Lesen staute sich die Zeit. –
Auf einmal sind die Seiten überschienen,
und statt der bangen Wortverworrenheit
steht: Abend, Abend … überall auf ihnen;
ich schau noch nicht hinaus, und doch zerreißen
die langen Zeilen, und die Worte rollen
von ihren Fäden fort, wohin sie wollen …
Da weiß ich es: über den übervollen
glänzenden Gärten sind die Himmel weit;
die Sonne hat noch einmal kommen sollen. –
Und jetzt wird Sommernacht, soweit man sieht:
Zu wenig Gruppen stellt sich das Verstreute,
dunkel auf langen Wegen gehn die Leute,
und seltsam weit, als ob es mehr bedeute,
hört man das Wenige, das noch geschieht.

Und wenn ich jetzt vom Buch die Augen hebe,
wird nichts befremdlich sein und alles groß.
Dort draußen ist, was ich hier drinnen lebe,
und hier und dort ist alles grenzenlos;
nur daß ich mich noch mehr damit verwebe,
wenn meine Blicke an die Dinge passen
und an die ernste Einfachheit der Massen, –
da wächst die Erde über sich hinaus.
Den ganzen Himmel scheint sie zu umfassen:
der erste Stern ist wie das letzte Haus.
– Rainer Maria Rilke, em “O Livro das Imagens”, (1902).. [tradução Maria João Costa Pereira]. Lisboa: Relógio D’Água, 2005.
– Rainer Maria Rilke, in “Das Buch der Bilder” (1902).

§

O leitor
Quem pode conhecer esse que o rosto
mergulha de si mesmo em outras vidas,
que só o folhear das páginas corridas
alguma vez atalha a contragosto?

A própria mãe já não veria o seu
filho nesse diverso ele que agora,
servo da sombra, lê. Presos à hora,
como sabermos quanto se perdeu

antes que ele soerga o olhar pesado
de tudo o que no livro se contém,
com olhos, que, doando, contravêm
o mundo já completo e acabado:
como crianças que brincam sozinhas
e súbito descobrem algo a esmo;
mas o rosto, refeito em suas linhas,
nunca mais será o mesmo.

.

Der leser
Wer kennt ihn, diesen, welcher sein Gesicht
wegsenkte aus dem Sein zu einem zweiten,
das nur das schnelle Wenden voller Seiten
manchmal gewaltsam unterbricht?

Selbst seine Mutter wäre nicht gewiss,
ob er es ist, der da mit seinem Schatten
Getränktes liest. Und wir, die Stunden hatten,
was wissen wir, wieviel ihm hinschwand, bis

er mühsam aufsah: alles auf sich hebend,
was unten in dem Buche sich verhielt,
mit Augen, welche, statt zu nehmen, gebend
anstießen an die fertig-volle Welt:
wie stille Kinder, die allein gespielt,
auf einmal das Vorhandene erfahren;
doch seine Züge, die geordnet waren,

blieben für immer umgestellt.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas II” (1908). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 294-295.
– Rainer Maria Rilke, im “Neue gedichte – II” (1908).

§

O mundo estava no Rosto
O mundo estava no rosto da amada –
e logo converteu-se em nada, em
mundo fora do alcance, mundo-além.

Por que não o bebi quando o encontrei
no rosto amado, um mundo à mão, ali,
aroma em minha boca, eu só seu rei?

Ah, eu bebi. Com que sede eu bebi.
Mas eu também estava pleno de
mundo e, bebendo, eu mesmo transbordei.

.

Welt war in dem Antlitz
Welt war in dem Antlitz der Geliebten —,
aber plötzlich ist sie ausgegossen:
Welt ist draußen, Welt ist nicht zu fassen.

Warum trank ich nicht, da ich es aufhob,
aus dem vollen, dem geliebten Antlitz
Welt, die nah war, duftend meinem Munde ?

Ach, ich trank. Wie trank ich unerschöpflich.
Doch auch ich war angefüllt mit zu viel

Welt, und trinkend ging ich selber über.
– Rainer Maria Rilke, em “Quatro Poemas Esparsos” (1908). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2007.

§

O poeta
Já te despedes de mim, Hora.
eu golpe de asa é o meu açoite.
Só: da boca o que faço agora?
Que faço do dia, da noite?

Sem paz, sem amor, sem teto,
caminho pela vida afora.
Tudo aquilo em que ponho afeto
fica mais rico e me devora.

.

Der dichter
Du entfernst dich von mir, du Stunde.
Wunden schlägt mir dein Flügelschlag.
Allein: was soll ich mit meinem Munde?
mit meiner Nacht? mit meinem Tag?

Ich habe keine Geliebte, kein Haus,
keine Stelle auf der ich lebe
Alle Dinge, an die ich mich gebe,
werden reich und geben mich aus.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas I” (1907). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 130-131.
– Rainer Maria Rilke, im “Neue Gedichte I” (1907).

§

Orfeu. Eurídice. Hermes
Eram as minas ásperas das almas.
Como veios de prata caminhavam
silentes pela treva. Das raízes
brotava o sangue que parece aos vivos,
na treva, duro como pórfiro. Depois
nada mais foi vermelho.

Somente rochas,
bosques imateriais. Pontes sobre o vazio
e o lago imenso, cinza, cego,
que sobre o fundo jaz, distante, como
um céu de chuva sobre uma paisagem.
Por entre os prados, suave, em plena calma,
deitado, como longa veia branca,
via-se o risco pálido da estrada.

Desta única via vinham eles.

À frente o homem com o manto azul,
esguio, olhar em alvo, mudo, inquieto.
Sem mastigar, seu passo devorava a estrada
em grandes tragos; suas mãos pendiam
rígidas, graves, das dobras das vestes
e não sabiam mais da leve lira
que brotava da ilharga como um feixe
de rosas dentre ramos de oliveira.
seus sentidos estavam em discórdia:
o olhar corria adiante como um cão,
voltava presto, e logo andava longe,
parando, alerta, na primeira curva,
mas o ouvido estacava como um faro.
Às vezes parecia-lhe sentir
a lenta caminhada dos dois outros
que o acompanhavam pela mesma senda.

Mas só restava o eco dos seus passos
a subir e do vento no seu manto.
A si mesmo dizia que eles vinham.
Gritava, ouvindo a voz esmorecer.

Eles vinham, os dois, vinham atrás,
em tardo caminhar. Se ele pudesse
voltar-se uma só vez (se contemplá-los
não fosse o fim de todo o empreendimento
nunca antes intentado) então veria
as duas sombras a seguir, silentes:
o deus das longas rotas e mensagens,
o capacete sobre os olhos claros,
o fino caduceu diante do corpo,
um palpitar de asas junto aos pés
e, confiada à mão esquerda: ela.

A mais amada, essa por quem a lira
chorou mais que o chorar das carpideiras,
por quem se ergueu um mundo de chorar,
um mundo com florestas e com vales,
estradas, povos, campos, rios, feras;
um mundo-pranto tendo como o outro
um sol e um céu calado com seus astros,
um céu-pranto de estrelas desconformes –
a mais amada.

Ia guiada pela mão do deus,
o andar tolhido pelas longas vestes,
incerto, tímido, sem pressa .
Ia dentro de si, como esperança,
e não pensava no homem que ia à frente,
nem no caminho que subia aos vivos.
Ia dentro de si. E o dom da morte
dava-lhe plenitude.
Como um fruto em doçura e escuridão,
estava plena em sua grande morte,
tão nova que não tinha entendimento.

Entrar em uma nova adolescência
inviolada. Seu sexo se fechava
como flor em botão ao entardecer
e suas mãos estavam tão distantes
de enlaçar outro ser que mesmo o toque
levíssimo do guia, o deus ligeiro,
a magoava por nímia intimidade.

Não era mais a jovem resplendente
que ecoava nos cantos do poeta,
nem o aroma do leito do casal
nem ilha e propriedade de um só homem.

Estava solta como os seus cabelos,
liberta como a chuva quando cai,
exposta como farta provisão.

Agora era raiz.

E quando enfim o deus
a deteve e, com voz cheia de dor,
disse as palavras: “Ele se voltou.” –
ela não compreendeu e disse: “Quem?”

Mas pouco além, sombrio, frente à clara
saída, se postava alguém, o rosto
já não reconhecível. Esse viu
em meio ao risco branco do caminho

o deus das rotas, com olhar tristonho,
volver-se, mudo, e acompanhar o vulto
que retornava pela mesma via,
o andar tolhido pelas longas vestes,
incerto, tímido, sem pressa.

.

Orpheus. Eurydike. Hermes
Das war der Seelen wunderliches Bergwerk.
Wie stille Silbererze gingen sie
als Adern durch sein Dunkel. Zwischen Wurzeln
entsprang das Blut, das fortgeht zu den Menschen,
und schwer wie Porphyr sah es aus im Dunkel.
Sonst war nichts Rotes.

Felsen waren da
und wesenlose Wälder. Brücken über Leeres
und yener grosse graue blinde Teich,
der über seinem fernem Grunde hing
wie Regenhimmel über einer Landschaft.
Und zwischen Wiesen, sanft und voller Langmut,
erschien des einen Weges blasser Streifen,
wie eine lange Bleiche hingelegt.

Und dieses einen Weges kamen sie.

Voran der schlanke Mann im blauen Mantel,
der stumm und ungedulgig vor sich aussah.
Ohne zu kauen frass sein Schritt den Weg
in grossen Bissen.; seine Hände hingen
schwer und verschlossen aus dem Fall der Falten
und wussten nich mehr von der leichten Leier,
die in die Linke eingewachsen war
wie Rosenranken in den Ast des ölbaums.
Und seine Sinne waren wie entzweit:
indes der Blick ihm wie ein Hund vorauslief,
umkehrte, kam und immer wieder weit
und wartend an der nächsten Wendung stand, —
blieb sein Gehör wie ein Geruch zurück.
Manchmal erschien es ihm als reichte es
bis an das Gehen jener beiden andern,
die folgen sollten diesen ganzen Aufstieg.

Dann wieder wars nur seins Steigens Nachklang
und seines Mantels Wind was hinter ihm war.
Er aber sagte sich, sie kämen doch.;
sagte es laut und hörte sich verhallen.

Sie kämen doch, nur wärens zwei
die furchtbar leise gingen. Dürfte er
sich einmal wenden (wäre das Zurückschaun
nicht die Zersetzung dieses ganzen Werkes,
das erst vollbracht wird), müsste er sie sehen,
die beiden Leisen, die ihm schweigend nachgehn:
Den Gott des Ganges und der weiten Botschaft,
die Reisehaube über hellen Augen,
den schlanken Stab hertragend vor dem Leibe
und flügelschlagend an den Fussgelenken.;
und seiner linken Hand gegeben: sie

Die So-geliebt, dass aus einer Leier
mehr Klage kam als je aus Klagefrauen.;
dass eine Welt aus Klage ward, in der
alles noch einmal da war: Wald und Tal
und Weg und Ortschaft, Feld und Fluss und Tier.;
und dass um diese Klage-Welt, ganz so
wie um die andre Erde, eine Sonne
und ein gestirnter stiller Himmel ging,
ein Klage-Himmel mit entstellten Sternen —
Diese So-geliebt.

Sie aber ging an jenes Gottes Hand,
den Schritt beschränkt von langen Leichenbändern,
unsicher, sanft und ohne Ungeduld.
Sie war in sich, wie Eine hoher Hoffnung,
und dachte nicht des Mannes, der voranging,
und nicht des Weges, der ins Legen aufstieg.
Sie war in sich. Und ihr Gestorbensein
erfüllte sie wie Fülle.
Wie eine Frucht von Süssigkeit und Dunkel,
so war sie voll von ihrem grossen Tode,
der also neu war, dass sie nichts begriff.

Sie war in einem neuen Mädchentum
und unberührbar.; ihr Geschlecht war zu
wie eine junge Blume gegen Abend,
und ihre Hände waren der Vermählung
so sehr entwöhnt, dasss selbst des leichten Gottes
unendlich leise, leitende Berührung
sie kränkte wie zu sehr Vertraulichkeit.

Sie war schon nicht mehr diese blonde Frau,
die in des Dichters Liedern manchmal anklang,
nicht mehr des breiten Bettes Duft und Eiland
und jenes Mannes Eigentum nicht mehr.

Sie war schon aufgelöst wie langes Haar
und hingegeben wie gefallner Regen
und ausgeteilt wie hundertfacher Vorrat.

Sie war schon Wurzel.

Und als plötzlich jäh
der Gott sie anhielt und mit Schmerz im Ausruf
die Worte sprach: Er hat sich umgewendet —,
begriff sie nichts und sagte leise: Wer?

Fern aber, dunkel vor dem klaren Ausgang,
stand irgend jemand, dessen Angesicht
nicht zu erkennen war. Er stand und sah,
wie auf dem Streifen eines Wiesenpfades

mit trauervollem Blick der Gott der Botschaft
sich schweigend wandte, der Gestalt zu folgen,
die schon zurückging dieses selben Weges,
den Schritt beschränkt von langen Leichenbändern,
unsicher, sanft und ohne Ungeduld.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas I” (1907). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013.
– Rainer Maria Rilke, im “Neue Gedichte I” (1907).

§

Os cântaros
Ó boca de fonte, doadora, ó boca
que inexaurível dizes uma só coisa, pura, –
tu, máscara de mármore ante a face
fluida da água. E no plano de fundo

a origem dos aquedutos. De longe, passando
junto aos túmulos, da vertente do Apenino
trazem-te a tua fala, que então
pelo negro envelhecer do queixo

passa e cai na concha em tua frente.
Esta é a orelha jacente e adormecida,
a orelha de mármore pra que falas sempre.

Uma orelha da Terra. Apenas pra si só
ela fala assim. Interpõe-se um cântaro,
parece-lhe que estás a interrompê-la.

.

XV – O Brunnen-Mund, du gebender, du Mund
O Brunnen-Mund, du gebender, du Mund,
der unerschöpflich Eines, Reines, spricht, –
du, vor des Wassers fließendem Gesicht,
marmorne Maske. Und im Hintergrund

der Aquädukte Herkunft. Weither an
Gräbern vorbei, vom Hang des Apennins
tragen sie dir dein Sagen zu, das dann
am schwarzen Altern deines Kinns

vorüberfällt in das Gefäß davor.
Dies ist das schlafend hingelegte Ohr,
das Marmorohr, in das du immer sprichst.

Ein Ohr der Erde. Nur mit sich allein
redet sie also. Schiebt ein Krug sich ein,
so scheint es ihr, daß du sie unterbrichst.
– Rainer Maria Rilke, em “Sonetos a Orfeu” (1923).. in: RILKE, Rainer Maria. Poemas, As elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu. [tradução Paulo Quintela]. Lisboa: Editora O Oiro do Dia, 1983.
– Rainer Maria Rilke , in “Die Sonette an Orpheus” (Zweitert Teil). 1. Auflage 1923.

§

O solitário
Não: uma torre se erguerá do fundo
do coração e eu estarei à borda:
onde não há mais nada, ainda acorda
o indizível, a dor, de novo o mundo.

Ainda uma coisa, só, no imenso mar
das coisas, e uma luz depois do escuro,
um rosto extremo do desejo obscuro
exilado em um nunca-apaziguar,

ainda um rosto de pedra, que só sente
a gravidade interna, de tão denso:
as distâncias que o extinguem lentamente
tornam seu júbilo ainda mais intenso.
.

Der einsame
Wie einer, der auf fremden Meeren fuhr,
so bin ich bei den ewig Einheimischen;
die vollen Tage stehn auf ihren Tischen,
mir aber ist die Ferne voll Figur.

In mein Gesicht reicht eine Welt herein,
die vielleicht unbewohnt ist wie ein Mond,
sie aber lassen kein Gefühl allein,
und alle ihre Worte sind bewohnt.

Die Dinge, die ich weither mit mir nahm,
sehn selten aus, gehalten an das Ihre -:
in ihrer großen Heimat sind sie Tiere,
hier halten sie den Atem an vor Scham.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas II” (1907). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 292-293.
– Rainer Maria Rilke (Paris, Mitte August 1907).

§

Para recitar antes de adormecer
Eu queria cantar para dentro de alguém,
sentar-me junto de alguém e estar aí.
Eu queria embalar-te e cantar-te mansamente
e acompanhar-te ao despertares e ao adormeceres.
Queria ser o único na casa
a saber: a noite estava fria.
E queria escutar dentro e fora
de ti, do mundo, da floresta.
Os relógios chamam-se anunciando as horas
e vê-se o fundo o tempo.
E em baixo ainda passa um estranho
e acirra um cão desconhecido.
Depois regressa o silêncio. Os meus olhos,
muito abertos, pousaram em ti;
e prendem-te docemente e libertam-te
quando algo se move na escuridão.

.

Zum Einschlafen zu sagen
Ich möchte jemanden einsingen,
bei jemandem sitzen und sein.
Ich möchte dich wiegen und kleinsingen
und begleiten schlafaus und schlafein.
Ich möchte der Einzige sein im Haus,
der wüßte: die Nacht war kalt.
Und möchte horchen herein und hinaus
in dich, in die Welt, in den Wald.
Die Uhren rufen sich schlagend an,
und man sieht der Zeit auf den Grund.
Und unten geht noch ein fremder Mann
und stört einen fremden Hund.
Dahinter wird Stille. Ich habe groß
die Augen auf dich gelegt;
und sie halten dich sanft und lassen dich los,
wenn ein Ding sich im Dunkel bewegt.
– Rainer Maria Rilke, em “O livro das imagens” (1902).[tradução de Maria João Costa Pereira]. Lisboa: Relógio D’Água, 2005.
– Rainer Maria Rilke, in “Das Buch der Bilder” (1902).

§

Primeira Elegia
Quem, se eu gritasse, entre as legiões de Anjos
me ouviria? E mesmo que um deles me tomasse
inesperadamente em seu coração, aniquilar-me-ia
sua existência demasiado forte. Pois que é o Belo
senão o grau do Terrível que ainda suportamos
e que admiramos porque, impassível, desdenha
destruir-nos? Todo Anjo é terrível.
E eu me contenho, pois, e reprimo o apelo
do meu soluço obscuro. Ai, quem nos poderia
valer? Nem anjos, nem homens
e o intuitivo animal logo adverte
que para nós não há amparo
neste mundo definido. Resta-nos, quem sabe,
a árvore de alguma colina, que podemos rever
cada dia; resta-nos a rua de ontem
e o apego cotidiano de algum hábito
que se afeiçoou a nós e permaneceu.
E a noite, a noite, quando o vento pleno dos espaços
do mundo desgastar-nos a face — a quem se furtaria ela,
a desejada, ternamente enganosa, sobressalto para o
coração solitário? Será mais leve para os que amam?
Ai, apenas ocultam eles, um ao outro, seu destino.
Não o sabias? Arroja o vácuo aprisionado em teus braços
para os espaços que respiramos — talvez os pássaros
sentirão o ar mais dilatado, num vôo mais comovido.
(…)

.

Die Erste Elegie
Wer, wenn ich schriee, hörte mich denn aus der Engel
Ordnungen? und gesetzt selbst, es nähme
einer mich plötzlich ans Herz: ich verginge von seinem
stärkeren Dasein. Denn das Schöne ist nichts
als des Schrecklichen Anfang, den wir noch grade ertragen,
und wir bewundern es so, weil es gelassen verschmäht,
uns zu zerstören. Ein jeder Engel ist schrecklich.
Und so verhalt ich mich denn und verschlucke den Lockruf
dunkelen Schluchzens. Ach, wen vermögen
wir denn zu brauchen? Engel nicht, Menschen nicht,
und die findigen Tiere merken es schon,
daß wir nicht sehr verläßlich zu Haus sind
in der gedeuteten Welt. Es bleibt uns vielleicht
irgend ein Baum an dem Abhang, daß wir ihn täglich
wiedersähen; es bleibt uns die Straße von gestern
und das verzogene Treusein einer Gewohnheit,
der es bei uns gefiel, und so blieb sie und ging nicht.
O und die Nacht, die Nacht, wenn der Wind voller Weltraum
uns am Angesicht zehrt -, wem bliebe sie nicht, die ersehnte,
sanft enttäuschende, welche dem einzelnen Herzen
mühsam bevorsteht. Ist sie den Liebenden leichter?
Ach, sie verdecken sich nur mit einander ihr Los.
Weißt du’s noch nicht? Wirf aus den Armen die Leere
zu den Räumen hinzu, die wir atmen; vielleicht daß die Vögel
die erweiterte Luft fühlen mit innigerm Flug.

(…)
– Rainer Maria Rilke, in “Elegias de Duíno – Rainer Maria Rilke”. [tradução Dora Ferreira da Silva]. São Paulo: Globo, 1991.

§

Recordação
E tu esperas, aguardas a única coisa
que aumentaria infinitamente a tua vida;
o poderoso, o extraordinário,
o despertar das pedras,
os abismos com que te deparas.

Nas estantes brilham
os volumes em castanho e ouro;
e tu pensas em países viajados,
em quadros, nas vestes
de mulheres encontradas e já perdidas.

E então de súbito sabes: era isso.
Ergues-te e diante de ti estão
angústia e forma e oração
de certo ano que passou.

.

Erinnerung
Und du wartest, erwartest das Eine,
das dein Leben unendlich vermehrt;
das Mächtige, Ungemeine,
das Erwachen der Steine,
Tiefen, dir zugekehrt.

Es dämmern im Bücherständer
die Bände in Gold und Braun;
und du denkst an durchfahrene Länder,
an Bilder, an die Gewänder
wiederverlorener Fraun.

Und da weißt du auf einmal: das war es.
Du erhebst dich, und vor dir steht
eines vergangenen Jahres
Angst und Gestalt und Gebet.
– Rainer Maria Rilke, em “O livro das imagens” (1902).[tradução de Maria João Costa Pereira]. Lisboa: Relógio D’Água, 2005.
– Rainer Maria Rilke, in “Das Buch der Bilder” (1902).

§

São Sebastião
Como alguém que jazesse, está de pé,
sustentado por sua grande fé.
Como mãe que amamenta, a tudo alheia,
grinalda que a si mesma se cerceia.

E as setas chegam: de espaço em espaço,
como se de seu corpo desferidas,
tremendo em suas pontas soltas de aço.
Mas ele ri, incólume, às feridas.

Num só passo a tristeza sobrevém
e em seus olhos desnudos se detém,
até que a neguem, como bagatela,
e como se poupassem com desdém
os destrutores de uma coisa bela.

.

Sankt Sebastian
Wie ein Liegender so steht er, ganz
hingehalten von dem großen Willen.
Weitentrückt wie Mütter, wenn sie stillen,
und in sich gebunden wie ein Kranz.

Und die Pfeile kommen: jetzt und jetzt
als sprängen sie aus seinen Lenden,
eisern bebend mit den freien Enden.
Doch er lächelt dunkel, unverletzt.

Einmal nur wird seine Trauer groß,
und die Augen liegen schmerzlich bloß,
bis sie etwas leugnen, wie Geringes,
und ließen sie verächtlich los
die Vernichter eines schönen Dinges.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas I” (1907). In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 124-125.
– Rainer Maria Rilke, in “Neue gedichte – I” (1907).

§

Solidão
A solidão é como uma chuva.
Ergue-se do mar ao encontro das noites;
de planícies distantes e remotas
sobe ao céu, que sempre a guarda.
E do céu tomba sobre a cidade.

Cai como chuva nas horas ambíguas,
quando todas as vielas se voltam para a manhã
e quando os corpos, que nada encontraram,
desiludidos e tristes se separam;
e quando aqueles que se odeiam
têm de dormir juntos na mesma cama:

então, a solidão vai com os rios…

.

Einsamkeit
Die Einsamkeit ist wie ein Regen.
Sie steigt vom Meer den Abenden entgegen;
von Ebenen, die fern sind und entlegen,
geht sie zum Himmel, der sie immer hat.
Und erst vom Himmel fällt sie auf die Stadt.

Regnet hernieder in den Zwitterstunden,
wenn sich nach Morgen wenden alle Gassen
und wenn die Leiber, welche nichts gefunden,
enttäuscht und traurig von einander lassen;
und wenn die Menschen, die einander hassen,
in einem Bett zusammen schlafen müssen:

dann geht die Einsamkeit mit den Flüssen…
– Rainer Maria Rilke, em “O Livro das Imagens”, (1902).. [tradução Maria João Costa Pereira]. Lisboa: Relógio D’Água, 2005.
– Rainer Maria Rilke, in “Das Buch der Bilder” (1902).

§

Soneto
(à Franz Kappus)

Treme sem queixa por meu coração,
sem suspiro, uma dor muito sombria.
Só dos sonhos a nívea floração
é a festa de algum mais tranqüilo dia.

Tanta vez a grande interrogação
se me depara! Encolho-me, e com fria
timidez passo, como passaria
por bravo mar, sem aproximação.

Desce, então, sobre mim, turva amargura
como esses céus cinzentos de verão
Onde uma estrela às vezes estremece.

Tateantes, minhas mãos vão à procura
do amor, buscam palavras da oração
Que meu lábio deseja e não conhece.

.

Sonnet
(Franz Kappus)

Durch mein Leben Zittert ohne Klage,
ohne Seufzer ein tiefdunkles Weh
Meiner Träume reiner Blütenschnee
ist die Weihe menier stillsten Tage.

Öfter aber kreuzt die große Frage
Meinen Pfad. Ich werde klein und geh
kalt vorüber wie an einem See,
dessen Flut ich nicht zu messen wage.

Und dann sinkt win Leid auf mich, so trüble
wie das Grau galanzarmer Sommernächte,
die ein Stern durchflimmert – dann und wann – :

Mein Hände tasten dann nach Liebe,
weil ich gerne Laute beten möchte,

die mein heißer Mund nicht finden kann…
– Rainer Maria Rilke, em “Carta nº 7′ – Cartas a um jovem poeta.” [tradução Paulo Rónai]. in: RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. A canção de amor e de morte do porta-estandarte Cristóvão Rilke. [tradução Paulo Rónai e Cecília Meireles]. 22ª ed., São Paulo: Globo, 1995.

§

Soneto XXI
Eis outra vez a Primavera. A Terra
é um menino que sabe dizer versos;
tantos, oh tantos… Por aquele esforço
de longo estudo vai receber um prêmio.

Severo foi o mestre. Nós gostávamos
da brancura da barba daquele velho.
Agora podemos perguntar o nome
do verde, o azul: ela sabe, ela sabe!

Terra feliz, em férias, brinca agora
co′as crianças. Queremos agarrar-te,
Terra alegre. A mais jovial consegue-o.

Oh, o muito em que o mestre as instruiu
e o impresso nas raízes e nos longos
troncos difíceis: ela o canta, canta!

.

XXI. Sonett
Singe die Gärten, mein Herz, die du nicht kennst; wie in Glas
eingegossene Gärten, klar, unerreichbar.
Wasser und Rosen von Ispahan oder Schiras,
singe sie selig, preise sie, keinem vergleichbar.

Zeige, mein Herz, daß du sie niemals entbehrst.
Daß sie dich meinen, ihre reifenden Feigen.
Daß du mit ihren, zwischen den blühenden Zweigen
wie zum Gesicht gesteigerten Lüften verkehrst.

Meide den Irrtum, daß es Entbehrungen gebe
für den geschehnen Entschluß, diesen: zu sein!
Seidener Faden, kamst du hinein ins Gewebe.

Welchem der Bilder du auch im Innern geeint bist
(sei es selbst ein Moment aus dem Leben der Pein),
fühl, daß der ganze, der rühmliche Teppich gemeint ist.
– Rainer Maria Rilke, em “Sonetos a Orfeu” (1923).. in: RILKE, Rainer Maria. Poemas, as elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu. [tradução Paulo Quintela]. Lisboa: Editora O Oiro do Dia, 1983.
– Rainer Maria Rilke, im “Die Sonette an Orpheus, Zweiter Teil”.

§

Torso arcaico de Apolo
Não conhecemos a sua cabeça inaudita
Onde as pupilas amadureciam. Mas
Seu torso brilha ainda como um candelabro
No qual o seu olhar, sobre si mesmo voltado

Detém-se e brilha. Do contrário não poderia
Seu mamilo cegar-te e nem à leve curva
Dos rins poderia chegar um sorriso
Até aquele centro, donde o sexo pendia.

De outro modo ergue-se-ia esta pedra breve e mutilada
Sob a queda translúcida dos ombros
E não tremeria assim, como pele selvagem.

E nem explodiria para além de todas as suas fronteiras
Tal como uma estrela. Pois nela não há lugar
Que não te mire: precisas mudar de vida.

.

Archaïscher Torso Apollos
Wir kannten nicht sein unerhörtes Haupt,
darin die Augenäpfel reiften. Aber
sein Torso glüht noch wie ein Kandelaber,
in dem sein Schauen, nur zurückgeschraubt,

sich hält und glänzt. Sonst könnte nicht der Bug
der Brust dich blenden, und im leisen Drehen
der Lenden könnte nicht ein Lächeln gehen
zu jener Mitte, die die Zeugung trug.

Sonst stünde dieser Stein entstellt und kurz
unter der Schultern durchsichtigem Sturz
und flimmerte nicht so wie Raubtierfelle;

und bräche nicht aus allen seinen Rändern
aus wie ein Stern: denn da ist keine Stelle,
die dich nicht sieht. Du mußt dein Leben ändern.
– Rainer Maria Rilke, em “Outra parte dos novos poemas” (1926). in: FAUSTINO, Mário. Poesia completa e traduzida. [Org. Benedito Nunes]. São Paulo: Max Limonard, 1985, p.262-263.
– Rainer Maria Rilke, im “Der neuen Gedichte anderer Teil” (1908).

§

Tumbas das Hetairas
Em seus longos cabelos elas jazem,
rostos escuros, encerrados em si mesmos,
olhos cerrados como se distantes.
Esqueletos e bocas, flores. E nas bocas
dentes polidos, como num xadrez de bolso,
peças enfileiradas em marfim.
Flores, pérolas amarelas, ossos finos
e mãos e mantas, murchas vestimentas,
e lá no fundo, o coração cravado.
Mas sob anéis e talismãs e pedras
de olhos azuis (regalos preferidos),
ainda resta, em sua cripta, o sexo mudo,
cumulado de pétalas de flores.
Pérolas amarelas, ainda, esparsas,—
pratos de terracota, curvos, adornados
de suas imagens, cacos verdoengos
de jarras de óleo olentes como flores,
miniaturas de deuses e altares,
céus de hetairas, deuses desejantes.
Cintos soltos, escaravelhos-pedras,
vultos pequenos com enormes falos,
boca ridente, atletas, dançarinas,
fíbulas de ouro, como arcos de caça
para amuletos de animais e pássaros,
e agulhas finas, utensílios raros,
e sobre um vaso circular, vermelho,
como a negra inscrição de algum portal,
as pernas rígidas de uma quadriga.
De novo flores, perólas roladas,
as ancas lisas da pequena lira,
e dentre os véus que caem como névoa,
como se de crisálidas-sandálias:
a borboleta leve de um artelho.

Jazem assim, acúmulo de coisas,
coisas preciosas, pedras, jóias, jogos,
bagatelas (caidas sobre elas)
no escuro, como se o leito de um rio.

Pois elas foram rios,
e em ondas breves e velozes, nelas,
precipitaram-se os corpos de jovens
(que ansiavam só por uma vida nova)
e torrentes de homens irromperam.
E às vezes os meninos das colinas
da infância vinham em tímidas quedas,
brincavam com as coisas até quando
a cachoeira enchia os seus sentidos:

Então davam à água rasa e clara
toda a extensão dos cursos expansivos
e enfrentavam remoinhos e águas fundas,
refletindo, pela primeira vez, as margens
e a voz dos pássaros ao longe —, e as noites
estelares de um país ameno abriam
um céu que nunca mais se fecharia.

.

Hetären-Gräber
In ihren langen Haaren liegen sie
mit braunen, tief in sich gegangenen Gesichtern.
Die Augen zu wie vor zu vieler Ferne.
Skelette, Munde, Blumen. In den Munden
die glatten Zähne wie ein Reise-Schachspiel
aus Elfenbein in Reihen aufgestellt.
Und Blumen, gelbe Perlen, schlanke Knochen,
Hände und Hemden, welkende Gewebe
über dem eingestürzten Herzen. Aber
dort unter jenen Ringen, Talismanen
und augenblauen Steinen (Lieblings-Angedenken)
steht noch die stille Krypta des Geschlechtes,
bis an die Wölbung voll mit Blumenblättern.
Und wieder gelbe Perlen, weitverrollte, –
Schalen gebrannten Tones, deren Bug
ihr eignes Bild geziert hat, grüne Scherben
von Salben-Vasen, die wie Blumen duften,
und Formen kleiner Götter: Hausaltäre,
Hetärenhimmel mit entzückten Göttern.
Gesprengte Gürtel, flache Skarabäen,
kleine Figuren riesigen Geschlechtes,
ein Mund der lacht und Tanzende und Läufer,
goldene Fibeln, kleinen Bogen ähnlich
zur Jagd auf Tier- und Vogelamulette,
und lange Nadeln, zieres Hausgeräte
und eine runde Scherbe roten Grundes,
darauf, wie eines Eingangs schwarze Aufschrift,
die straffen Beine eines Viergespannes.
Und wieder Blumen, Perlen, die verrollt sind,
die hellen Lenden einer kleinen Leier,
und zwischen Schleiern, die gleich Nebeln fallen,
wie ausgekrochen aus des Schuhes Puppe:
des Fußgelenkes leichter Schmetterling.

So liegen sie mit Dingen angefüllt,
kostbaren Dingen, Steinen, Spielzeug, Hausrat,
zerschlagnem Tand (was alles in sie abfiel),
und dunkeln wie der Grund von einem Fluss.

Flussbetten waren sie,
darüber hin in kurzen schnellen Wellen
(die weiter wollten zu dem nächsten Leben)
die Leiber vieler Jünglinge sich stürzten
und in denen der Männer Ströme rauschten.
Und manchmal brachen Knaben aus den Bergen
der Kindheit, kamen zagen Falles nieder
und spielten mit den Dingen auf dem Grunde,
bis das Gefälle ihr Gefühl ergriff:

Dann füllten sie mit flachem klarem Wasser
die ganze Breite dieses breiten Weges
und trieben Wirbel an den tiefen Stellen;
und spiegelten zum ersten Mal die Ufer
und ferne Vogelrufe –, während hoch
die Sternennächte eines süßen Landes
in Himmel wuchsen, die sich nirgends schlossen.
– Rainer Maria Rilke, em “Novos poemas I”. In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução). Coisas e anjos de Rilke. São Paulo: Perspectiva, 2013, p. 166-167.

§

Fragmento de Rainer Maria Rilke
‘intradução’, do poeta Augusto de Campos

revistaprosaversoearte.com - Rainer Maria Rilke - poemas
Fragmento Rosa, Rilke, tradução Augusto de Campos (2004)

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:: Rainer Maria Rilke – o poeta de todos os tempos

© Seleção e organização: Elfi Kürten Fenske em colaboração José Allexandre







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