Não nos iludamos: estamos sob ataque

Há pouco mais de uma semana, terroristas fizeram explodir caminhões armadilhados, num antigo mercado e num hotel de Mogadíscio, na Somália, matando mais de 300 pessoas. Foi o atentado mais mortífero desde que, a 11 de Setembro de 2001, dois aviões derrubaram as Torres Gêmeas. Sem surpresa, a notícia da tragédia não ocupou muito espaço nos jornais do mundo, nem tampouco parece ter comovido multidões.

“Para todo o homem, mesmo o mais culto, a humanidade consiste essencialmente naquela porção de homens que residem no seu bairro.” A afirmação é de Eça de Queirós, numa crônica que recordo com frequência. Eça começa por lembrar um maremoto, na China, que terá vitimado perto de um milhão de pessoas; as fomes na Índia; a matança de 300 mil cristãos na Armênia. A tese do escritor português é que nenhuma daquelas notícias conseguia perturbar os seus concidadãos, por se acharem demasiado distantes do foco das desgraças: “A distância atua sobre a emoção exatamente como atua sobre o som. A mesma dura lei física rege desgraçadamente a acústica e a sensibilidade. É sempre em ambas o idêntico e tão racional princípio das ondulações, que vão decrescendo à maneira que se afastam do seu centro, até que docemente se imobilizam e morrem: se elas traziam um som que vinha vibrando — o som cala quando elas param: se traziam um terror que vinha tremendo — o terror finda quando elas findam.”

A Terra encolheu desde o dia em que Eça escreveu as linhas acima. O mundo está muitíssimo menor, é quase um bairro. Acordamos e lemos os principais jornais americanos, franceses ou portugueses. Depois, enquanto tomamos o café da manhã, conversamos no Skype com um amigo que vive em Barcelona. Mais tarde, sentamo-nos diante da televisão, e vemos a CNN ou a Euronews. Cruzamos a rua e estamos em Madri. Dali a alguns passos é já Berlim ou Buenos Aires. Assustamo-nos se um louco dispara sobre inocentes em Copenhague, ou quando um furacão avança sobre Miami. Podíamos estar lá. Podíamos ser uma daquelas pessoas.

O continente africano, contudo, parece estar fora desta geografia íntima e privilegiada. O mundo encolheu, mas África continua imensa, obscura e distante. Revolta-me a indiferença relativa ao atentado da passada semana na Somália, e a todas as atrocidades que aconteceram antes, na Nigéria ou no Sudão, da responsabilidade de fundamentalistas islâmicos. Infelizmente, os próprios países africanos reagiram com idêntica apatia. Como, aliás, o Brasil, que está muito mais próximo de Luanda ou de Porto Novo, no Benim, pela cultura, pela história e pela matriz, do que de Copenhague, Miami ou Paris.

Nos últimos dias também Moçambique sofreu um grave ataque por parte de terroristas islâmicos. O ataque ocorreu na localidade de Mocimboa da Praia, no Norte do país, envolvendo guerrilheiros do Al-Shabab, grupo que tem vindo a ganhar expressão no Quênia e na Somália. Os terroristas avançaram aos tiros contra uma delegacia de polícia, morrendo nos confrontos quatro agentes e 15 atacantes.

O ataque chamou a atenção para o crescimento do fundamentalismo islâmico em Moçambique. Metade da população moçambicana segue o islã, que chegou ao país, há centenas de anos, trazido por comerciantes e traficantes de escravos árabes. Os portugueses e a religião católica desembarcaram muito mais tarde. Durante séculos o islã conviveu pacificamente com religiões tradicionais africanas, com o hinduísmo, com o catolicismo e outras igrejas cristãs.

Nos últimos anos, a Arábia Saudita começou a oferecer bolsas de estudo em teologia a jovens moçambicanos, os quais retornam a casa transformados em fervorosos islamitas. Há neste momento, em Moçambique, um conflito surdo entre lideranças islâmicas, entre velhos e jovens, entre um islã moderado, harmoniosamente integrado na sociedade, e um islã insurgente, que se quer apoderar do aparelho de Estado para impor a todos a lei da sharia.

Pode parecer um conflito muito distante do Brasil. Não é. Fundamentalismo islâmico e fundamentalismo cristão são duas faces de uma mesma moeda. Ambos os movimentos têm por objetivo a captura do Estado, e a subjugação de toda a sociedade aos seus estreitíssimos princípios éticos e morais. Ambos são movimentos profundamente reacionários, contra a ciência, contra a arte, contra a inteligência, contra a modernidade. A diferença entre o Brasil e Moçambique é que no Brasil esse movimento está num estágio muito mais avançado. Já controla grandes cidades, como o Rio de Janeiro, e está na iminência de se apoderar de todo o aparelho de Estado.

Não nos iludamos: estamos sob ataque. A luta contra o fundamentalismo, que se trava em Mogadíscio ou em Maputo, é a mesma que se trava no Rio de Janeiro. Sim, o mundo é um bairro, e todos os homens são nossos vizinhos.

Fonte: ‘O mal distante, ou talvez não’ – por José Eduardo Agualusa. Originalmente publicado em O Globo, 23/10/2017.







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