Quando se vê um documentário como “Holocausto brasileiro” (2016), dirigido por Daniela Arbex (que é também autora do livro-reportagem que inspirou o filme) e Armando Mendz, em algum momento tende a surgir a interrogação: como um assunto tão urgente e pra lá de merecedor de estudos vêm à tona, de modo contundente, somente agora? Não que fosse um assunto recém descoberto, aliás Helvécio Ratton já havia realizado um curta a respeito em 1979, mas nunca houve repercussão à altura como a de poucos tempos para cá.

“Holocausto brasileiro” trata da infame história do Hospital Colônia de Barbacena, “nau dos loucos” mineira que por décadas recebeu doentes mentais, mas sobretudo funcionou como local de despejo de pessoas socialmente indesejadas. Homossexuais, crianças rebeldes, prostitutas, mendigos, “encrenqueiros”, bastava a conveniente e arbitrária alcunha de “louco”. Certamente não foi o primeiro e único caso no Brasil, mas surpreende pelos números e pela coletânea de absurdos: mais de 60 mil mortos, entre começo do século passado e a década de 1970. Além de autêntico morredouro de pessoas, o Hospital Colônia abrigou trabalho escravo, abusos sexuais e torturas, em geral travestidas de “trabalho terapêutico” – os famosos eletrochoques eram abertamente mecanismo de castigos para os mais rebeldes. Não bastasse isso, o filme aborda o constante tráfico de corpos para faculdades de medicina, entre os diversos horrores.

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Hospital Colônia de Barbacena: semelhanças com campos de concentração nazistas fonte: Blog Psicologia Aplicada à Saúde

Ao término do filme, persiste a sensação de que temos um grande quadro de terror do qual não queremos tratar, ou apenas esquecer. O curioso – e, de certo modo alentador, é que “Holocausto brasileiro” não está sozinho se o assunto é resgatar episódios negligenciados de forma para lá de conveniente. O recente “Menino 23” (2016), dirigido por Belisário Franca, expõe o episódio de escravização de cerca de cinquenta meninos, todos negros, numa fazenda em Campina do Monte Alegre, interior paulista, por simpatizantes do nazismo locais.

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Tijolo com suástica em fazenda de Campina do Monte Alegre. fonte: globo.com

A partir da pesquisa do professor Sidney Aguilar, expõe um passado pouquíssimo falado: como ideias eugenistas eram para lá de influentes naqueles tempos, a ponto de terem reflexo na Constituição de 1934. Em entrevista ao programa Metrópolis, da TV Cultura, Sidney e Belisário falam até na “bancada eugenista” de deputados da época, em consonância com os integralistas brasileiros, mas também fascinados por teorias nazistas. Ou seja, daí se deduz que, embora isolado, o evento era reflexo de um processo maior, assustador, que seduzia parte da elite política do país da época.

“Operação Camanducaia”, documentário escrito e dirigido por Tiago Rezende Toledo e que deve ser finalizado em breve busca, à maneira jornalística, investigar outro incidente não tão distante, igualmente nefasto, até dono de certa fama mas já um tanto esquecido. Trata-se da bizarra história dos meninos encontrados nus e espancados em Camanducaia, município mineiro, na década de 70, fruto da política higienista que atirava menores de rua de São Paulo em kombis e os abandonava em municípios de outros estados, como se fossem “resíduo humano”. Este episódio inspirou “Infância dos mortos”, best seller de José Louzeiro, que inspiraria o “Pixote, a lei do mais fraco” (1981) de Hector Babenco.

Soa alentador, assim, o alvorecer de uma geração de filmes, sobretudo documentários, que buscam maior profundidade com feridas antigas e abertas do passado brasileiro. Nazistas caboclos, políticas higienistas a granel, genocídio. Assuntos atualíssimos, infelizmente, pois seu retorno está garantido quando há persistência do aplauso dos incautos – dia desses a Hebraica Rio forneceu espaço ao lunático-mor da política nacional, que comparou quilombolas a gado (nazistas não pensavam de forma muito diferente em relação aos judeus em Treblinka, Belsen e Auschwitz, não?).

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Capa do livro “Holocausto brasileiro”, de Daniela Arbex que originou o documentário. fonte: Saraiva

Falar em “falta de memória” histórica no Brasil tornou-se clichê. Mas somos obrigados, um tanto pateticamente, a correr a este clichê quando em épocas de farsescas reedições de marchadeiras golpistas, clamores pela volta dos militares e aplausos à esquadrões da morte. Concomitantemente, num país que não puniu seus verdugos do regime militar iniciado com o golpe em 64, ao contrário dos demais vizinhos sul-americanos. Mesmo país em que iniciativas como a Comissão da Verdade encontram resistência imensa, e os torturadores, via de regra, morrem idosos e em casa.

Ao mesmo tempo, surgem propostas amalucadas para impedir o debate político nas escolas. Fato é que, novamente, fica a impressão de haver um sinistro e irreparável conluio entre uma carência de memória coletiva, a vontade escassa de não repetir erros do passado e o desprezo do país à cultura – desprezo este tão bem representado por um governo que tentou extinguir o Ministério da Cultura logo após seu ato de usurpação.

* André de Paula Eduardo é jornalista, formado na Unesp, onde fez mestrado em Comunicação. Pesquisa cinema brasileiro, torce pro Santos e é apaixonado por Brahms e Pink Floyd. Colaborador da Revista Prosa Verso e Arte.

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