Escrevendo e-mail para uma instituição estrangeira, me deparei com a necessidade de definir “favela” de forma objetiva (não quis recorrer à expressão “slum area[1]). Em gesto automático, em memória às recomendações que recebia nos meus tempos de colegial, fiz a busca do termo em um dicionário on-line (em tese atualizado para 2017).

Lá constava:

“fa.ve.la. 1. conjunto de habitações toscas e miseráveis, geralmente em morros e onde habita gente pobre”.

Incomodei-me com a definição ‒ que, como ocorre com muitos termos dicionarizados ‒ estava ultrapassada. Li de novo. Respirei fundo e desliguei o computador.

Andei um pouco pelas vielas do Morro da Babilônia (favela situada no bairro do Leme, no Rio de Janeiro), observando a preparação para o culto de domingo e, a contragosto, revisitando na mente o conceito cuja leitura havia me causado tanto desconforto.

Enquanto caminhava, constatava ao meu redor a esperada negação da definição que o dicionário sugeria. Não sou pregadora de visão idílica de favela, mas em tom bem objetivo: dos inúmeros hostels iluminados na subida da ladeira Ary Barroso, passando pelo Bar do Didi e pelo Estrelas da Babilônia (restaurante premiado pelo Trip Advisor e indicação de várias revistas) e subindo até a casa de meu pai, na Rua do Rosário, não havia miséria nem casas toscas. Disso, aliás, sabia há tempos ‒ embora eu não resida na Babilônia, frequento a favela desde que meu pai se mudou para cá, há alguns anos.

Mas os pensamentos não se resignaram apenas com a comprovação de que o dicionário estava algumas décadas atrasado.

Ao rememorar todos os eventos que culminaram no surgimento das favelas, peguei-me pensando, curiosa, no fato de que, em algum momento, o termo cunhado no dicionário foi aceito como definição de favela.

Como tenho acompanhado vários movimentos recentes de ressignificação das palavras ‒ há, atualmente, uma belíssima mobilização conjunta no sentido de repensar práticas e discursos (Salve Foucault!) ‒, não pude deixar de me autopropor, nas palavras dos mestres Zen de Rubem Alves[2], um exercício de desaprendizagem do conceito e análise crítica do termo cunhado no dicionário.

O Morro da Providência, a primeira favela da história do Brasil, surgiu quando Cândido Barata Ribeiro iniciou a perseguição aos cortiços e ordenou a demolição do Cabeça-de-Porco. As famílias, desalojadas por conta da “ideologia da higiene”, recomeçaram a vida ocupando a Providência, no Centro do Rio de Janeiro. Em 1897, esse mesmo morro, de braços abertos, abrigou os soldados vindos da Guerra de Canudos ‒ que se encontravam desamparados porque o governo havia descumprido a promessa de lhes fornecer, caso vitoriosos, residências. A primeira favela surgiu, portanto, como resposta à condição de desamparo e miséria.

No início do Século XX, com a Reforma Urbana de Pereira Passos, ao tentarem expulsar as “casas toscas” e a miséria das áreas centrais do Rio de Janeiro, a favela se expandiu: o Morro da Providência, ironicamente, ganhou ainda mais habitantes recém-desalojados. Tentou-se desfazer, naquela ocasião, a favela instaurada no Centro do Rio ‒ a qual, nas palavras de José Murilo de Carvalho, era incompatível com o mundo belle-époque envergonhado do Brasil pobre e negro[3] ‒, mas o movimento foi interrompido com a Revolta da Vacina. A Providência continuou lá.

No início do século XX, as favelas se alastraram. Com a expansão industrial, também serviram de abrigos para grande número de migrantes e população pobre da cidade, que não contava com política habitacional capaz de absorver o crescimento da população de moradores no período. Os morros do Rio foram mais uma vez a resposta para a ausência de moradia e para a miséria.

Depois de projetos de Parques Proletariados, passada a era das remoções dos anos de 60 a 80, a construção da Zona Portuária, a Copa do Mundo e as Olimpíadas, as favelas continuaram se reconstruindo e se reorganizando (às vezes longe de seu lugar de origem, como foi o caso da Cidade de Deus). Na “viração”, os favelados construíram casas, montaram associações de moradores e, pouco a pouco, transformaram as favelas em algo bem distante do conceito do dicionário.

Hoje, enquanto olho para a bem-conservada Escolinha Tia Percilia – criada no início dos anos 90 por iniciativa de uma moradora do Leme e administrada pela Associação de Moradores da Babilônia até 2002, quando o colégio se tornou uma instituição independente   – tenho a certeza de que o elemento caracterizador das favelas nunca foi o método construtivo de suas casas, mas sim a infindável capacidade de luta e recomeço de seus moradores.

[1] As discussões relativas à ausência de correspondência exata do termo “favela” com o termo “slum area” já são levantadas há alguns anos. Exemplificativamente: a definição oficial de favela, produzida pelo IBGE é mais específica e restritiva do que a definição da ONU de slum área.

[2] Aqui faço referência ao livro “A Escola com que sempre sonhei sem nunca imaginar que pudesse existir”, de Rubem Alves.

[3] CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Companhia das Letras, 1987, p. 41.

* Juliana Ludmer, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio e mestranda em Sociologia e Direito pela UFF.

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