Tinha sete anos, e ainda era mais criança do que qualquer menina de sua idade. Pesava mil e quinhentos quilos, e chegaria a pesar quatro mil, se vivesse. Não viveu. Nascida na Índia, veio morrer no Leblon, sob a lona de um circo devastado pelo temporal — e essa madrugada de vento furioso, que ameaçava acabar com o mundo, terá sido um dos “fatos” de sua pequena vida sem acontecimentos.
Já se sabe que o necrológio é de Baby, a elefantinha que morreu de infecção na garganta. Esses animais são rústicos e delicados, e se no meio nativo se alimentam de plantas espinhentas, de cujo contato fugimos, padecem entretanto dos mesmos males que padecemos, e têm, quanto a nós, a desvantagem de uma sensibilidade que se ajustaria melhor ao nosso corpo que ao deles, ao passo que a nossa poderia chamar-se mais precisamente elefantina.
Vão rareando os elefantes, e com eles a doçura e a paciência na face da terra. Que a espécie caminha para o fim, os zoólogos já o têm prevenido. O lábio superior alongado e endurecido em tromba, e outros pormenores de estrutura — observa o professor Coutière — revelam a tendência primitiva ao gigantismo e à ancilose, que certos animais traziam consigo, e de que essas deformações representam justamente uma correção, grosseira, mas indispensável. Os traços subsistiram, mas a espécie nasceu, por assim dizer, errada, e tende a acabar. Por sua vez, os economistas lhe vaticinam o fim. O mesmo autor sério escreveu que basta olhar o elefante para concluir que ele é um “motor bárbaro” e de mínimo rendimento. Consome por dia uma ração bem mais cara que o óleo ou a eletricidade de um aparelho comum, enquanto este produz trabalho incomparavelmente mais precioso que o seu humilde ofício de transportador. Resta o valor econômico do seu marfim, mas talvez se torne menos dispendioso explorar jazidas fósseis desse material, como as que os mamutes deixaram na Sibéria. Há uma última utilidade do elefante, e essa retarda o seu desaparecimento: divertir meninos no circo. Baby não conheceu outra, pois que viveu realmente, para um elefante, l’espace d’un matin, isto é, o tempo de uma rosa.
Reduzido à condição circense, que pode o elefante pretender, como remédio a suas melancolias, agravadas na espessa convivência do homem? Fugir, é claro. Mas a fuga se reduz também a um passeio tonto pela cidade, entre bichos muito mais ferozes, que são os ônibus e os automóveis, num dédalo de ruas que não tem a lei e a simplicidade da floresta. Logo se organizam os homens para prendê-lo e restituí-lo ao seu mesquinho picadeiro. Se se recusa a voltar, os homens, considerando-se ameaçados, dispõem-se a fulminá-lo a tiro. Nunca nenhum escapou.
André Demaison, no Livro dos animais chamados selvagens, conta a história de Pupá, pequeno elefante pego numa colônia alemã da África, ocupada mais tarde pelos franceses. Sua alimentação onerosa, a leite condensado, se fazia à custa do governo; quando os residentes estrangeiros se retiraram, ele quedou abandonado, e andava a esmo pela cidade, mendigando comida, principalmente açúcar. Num Catorze de Julho, aproximou-se do clube francês em plena festa. Os homens, já bêbados, quiseram que ele também comemorasse a Queda da Bastilha, e deram-lhe um balde cheio de champanha, curaçau, anis e outros licores misturados. Pupá esvaziou-o com tamanha beatitude que daí por diante se tornou ébrio contumaz, e não podia compreender por que todos os dias não eram de festa, como aquele. Decadente, e sem comer, porque apenas lhe davam álcool, sentiu a nostalgia da selva, e fugiu para o interior, mas o meio natal o repeliu: estava demasiado marcado pela companhia do homem, para voltar a ser um bicho. Morreu, sobre os trilhos da via férrea, paralisando o tráfego.
Baby não viveu tais aventuras, nem teria muito que contar. Trabalhou, ainda criança, para comer, divertiu os outros e morreu sem ter compreendido (embora os elefantes sejam inteligentíssimos) a razão de ser de sua viagem da Índia ao Leblon, encerrada tão cedo, quando a outros de sua estirpe a natureza concede uma permanência de cem a cento e cinquenta anos sobre a terra. Mas imagine-se o que seria uma prisão de século e meio, mesmo no circo, e já não sentiremos tanto a morte de Baby.

— Carlos Drummond de Andrade, no livro “Fala, amendoeira”. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

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