“A água é a veste com a qual a vida nos visita.
Toda água viva é morada do Espírito e este aparece nas ondas e na ventania que se forma.
Na Amazônia, o espírito presente nos rios se mostra forte nos banzeiros.
Nunca entre no rio ou em um barco sem saudar o espírito que mora nas águas.”, Bep Karoti, liderança Kayapó.

Há água doce no Brasil como não há em nenhum outro lugar do planeta, ainda que nem todos aqui tenham ouvido notícia dela.

Não é de impressionar que a representação que mais se aproxima da Grande Mãe no imaginário do brasileiro, seja aquela que domina todas as águas: Iemanjá, a quem demos um jeito de sinonimizar com o próprio mar.

Essa força se apresenta, todo dois de fevereiro como o verdadeiro elemento cósmico que conduz os diálogos misteriosos, característicos, entre outras coisas, da interreligiosidade presente na formação da nossa cultura.

Na alquimia, como em diversas tradições, espírito e água estão relacionados. Seus caminhos estão intimamente ligados como fonte da vida. Parmênides, na Turba Philosophorum, faz sua louvação à água:

“Ó naturezas celestes que multiplicais ao sinal de Deus ‘as naturezas da verdade’! Ó natureza forte, que vence as naturezas, permitindo que se alegrem e sejam ditosas! Aquela é a que Deus conferiu uma força que o fogo não possui… Ela mesma é a verdade, ó buscadores da sabedoria, pois com seus corpos liquefeitos ela efetua a mais elevada das obras.”

Sobre o simbolismo da água, em Estudos Alquímicos, Jung fala da “água extraordinária”, personificada no sonho de Zósimo, “de dupla natureza, que é água e espírito, matando e revificando. Zósimo, ao despertar do sonho, pensa imediatamente na ‘composição das águas’: isto é efetivamente – do ponto de vista alquímico – a conclusão possível do processo. Uma vez que a água procurada e necessária representa um ciclo de renascimento e morte, todo processo, consistindo em morte e renascimento, significa a água divina.”

No ano novo a gente toma banho de mar buscando equilíbrio psicoenergético.

Atravessando um rio se chegar à outra margem.

A imagem da água de um rio propiciando a passagem para uma nova terra, nos aproxima do nascimento, do retorno ao ventre, ao estado embrionário do ser, o momento anterior ao despertar para a nova vida, que também é passagem.

Muitos povos da floresta acreditam que o ser humanos em seu princípio deixou o domínio das águas em condição de enviado para cuidar da natureza. Elas estão presentes no mito da criação dos Karajás e dos Yawalapiti, no Xingu. Em algumas tradições xamânicas, um dos ritos do processo de iniciação envolve a jornada em busca de uma fonte de água aonde habita um espírito com o qual se deve estabelecer um vínculo profundo, místico e familiar.

Os mergulhos no corpo da deusa são momentos de retorno à mãe, o pedido de uma nova chance, morte e vida, como nos rituais iniciáticos destas tradições. Em remissão, se submeter a aprender tudo de novo.

A água é feminina, e só se pode nascer por meio dela. Sua personificação como o divino maternal para os persas é Anahita, que assim como Iemanjá, representa o elemento em todas as suas características materiais, além de seu simbolismo.
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Mãe-água, quem tudo gera, princípio da vida, a porta por onde chegamos, o colo onde buscamos conforto e proteção.

É dia de visitar o mar e admirar sua manifestação imperiosa, sem saber direito o que pedir, imaginando o desterro doce do pescador da canção de Caymmi, que representa a nossa própria alma se entregando à dona dos caminhos.

Limpeza de todos os corpos espirituais e alinhamento da mente, em reconexão com a natureza, e o reconhecimento do poder de suas forças retornando em forma de saúde e axé, dentro da religiosidade afro-brasileira.

Este lindo itan conta como Olokum, mãe de Iemanjá, tornou-se rainha das águas:

“Olokum, senhora das águas, consulta Ifá,
numa época em que suas águas não eram bastantes para que alguém nelas se lavasse o rosto.
Se alguém recolhesse água em eu leito, recolheria, também, areia. Porque ela estava pobre de água.
Olossá, senhora da lagoa, consulta Ifá,
numa época em que suas águas não eram bastantes
para que alguém nelas se lavasse os pés.
Se alguém quisesse, com elas, lavar os pés, sujar-se-ia de lama e areia.
Pois havia na lagoa muito pouca água.
Olokum e Olossá foram, ambas, aos pés de Orunmilá rogar-lhe examinar o seu caso.
Poderiam elas tornar-se as maiores do mundo?
Orunmilá respondeu que se elas pudessem fazer as oferendas que ele escolhera para elas, suas vidas seriam um sucesso.
Ele disse que Olokum deveria oferecer duzentas cobertas pretas, duzentas cobertas brancas, um carneiro e vinte e seis mil búzios da costa.
Depois, ele recomendou à Olossá fazer o mesmo.
Olokum fez as oferendas.
Ela empregou tudo o que possuía.
Ela chegou a empregar-se como serva, para completar as oferendas. Olossá fez também as oferendas com tudo o que possuía.
Mas suas oferendas não foram completas, porque ela não encontrou onde se empregar.
Oxum, o rio, elegante senhora do pente de coral, consultou Ifá no dia em que ia conduzir todos os rios.
Os rios não sabiam em que direção seguir.
Eles correriam para frente ou para trás?
E haviam pedido conselho a Oxum.
Ifá respondeu:
‘Tu, Oxum, vais a um certo lugar e, neste lugar, serás muito bem recebida.
Os outro rios te seguirão.
Nenhum outro poderá te preceder em qualquer lugar onde estejas presente.’
Oxum reuniu todos os rios.
E os rios seguiram todos juntos.
Quando chegaram à beira da lagoa (osa), eles a cobriram completamente.
Quando deixaram a lagoa,
eles cobriram completamente o mar (okun).
Colocou-se, então, a questão de saber quem seria a rainha das águas. Olokum declarou:
‘O território onde vocês se encontram é meu’.
Eles discutiam aqui e ali.
Olodumaré manifestou-se a respeito:
‘A que possui o território é a rainha’.
Olokum foi, por direito, a rainha.
Olossá ordenou aos rios que se retirassem das suas terras.
Mas, os rios não encontraram saída por onde passar.
Assim, Olossá foi eleita segunda pessoa de Olokum.
A cada ano, todo os rios vêm adorá-la.

Foi assim que Olokum e Olossá tomaram-e populares na Terra e famosas no mundo dos deuses.”. Pierre Fatumbi Verger, em Lendas Africanas dos Orixás.

Água é a serpente, o ovo e o dragão mordendo o próprio rabo, é o círculo, o ciclo, o que fecunda e o que engravida. Liberta, acolhe e recolhe no fim da vida.

Mayra Muniz, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Designer e ilustradora.







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