Um relato sobre a convivência em um colégio inclusivo

Ana Sílvia é uma das primeiras amigas de infância das quais me recordo. No recreio do colégio, quando pequena, eu costumava brincar, junto com ela, de atribuir cores às auras das pessoas – que variavam a cada dia num espectro entre o azul bem claro e o vermelho escuro. A relação de Ana com as cores me intriga até hoje – essa preocupação em assimilar elementos da vida cotidiana às cores que lhe eram familiares. Lembro-me dela, ainda que vagamente, exatamente assim: colorida e cheia de ensinamentos a compartilhar.

Estudei, da creche ao Ensino Fundamental I (o colégio nunca aceitou inaugurar o Ensino Fundamental II), em uma escola inclusiva: Favinho de Mel. Mais especificamente: dividi, no período, as salas de aula com crianças com síndrome de down e distúrbios neurológicos (com as devidas adaptações ao currículo escolar para cada situação, antes que perguntem). Dentre elas, a Ana Sílvia – cuja valiosa lição sobre a cor das auras eu guardo até hoje comigo, e esporadicamente me permito relembrar.

Além da classe, eu dividia, com aquelas crianças, a vida. Elas eram a minha referência de amizade – daquelas amizades inocentes e ao mesmo tempo verdadeiras que só experienciamos de forma plena na infância. Ao lado delas, apreendi todos os valiosos ensinamentos dos primeiros anos – e tenho cá comigo a certeza de que foram raros os momentos da vida em que encontrei tamanha sinceridade e afeto.

Certa vez, me lembro bem, um amigo que estudava em colégio tradicional me confidenciou que seu pai reprovava o fato de eu não estudar em uma escola voltada exclusivamente para “gente normal” – segundo o sujeito, eu certamente sofreria com dificuldades de aprendizagem no futuro (uma terrível sina para uma criança ainda pequena).

Não entendi, à época, o comentário. Não via nada de anormal no meu dia-a-dia. As diferenças entre os meus companheiros de classe e de vida eram, em minha visão, tal como a diferença entre as personalidades com as quais nos deparamos ao longo de nossa trajetória: pessoas mais introspectivas, menos introspectivas, mais serelepes, menos serelepes, e por aí vai. Descobria, junto a eles, distintas formas de ver o mundo. Visões mais leves e simples (por vezes até mais lógicas). Eu aprendia com elas na mesma medida em que elas aprendiam comigo – e, sabia bem, podia contar com eles todas as vezes em que precisava de um abraço.

Com o tempo, as perguntas a respeito do colégio tornaram-se um pouco mais frequentes. Pais que antes elogiavam a proposta da escola perguntavam, de canto de boca, se, àquela altura, eu não deveria estar em outra instituição de ensino exclusiva para “pessoas como eu” (como eu? Logo eu, que não sou nenhum parâmetro de perfeição?). Eu continuava sem entender o tom de crítica das indagações.

Permaneci na escola. Parte das lições, à época já um pouco mais complexas do que nos primeiros anos do Fundamental I, passaram a ser transmitidas de acordo com uma nova metodologia. Primeiro o professor ensinava. Na sequência, os alunos que melhor tivessem compreendido a aula explicavam, com a supervisão e orientação do professor, aos seus outros colegas, o que haviam apreendido. E assim ia eu, revisando, ora como aprendiz ora como professora, todos os (modestos) conceitos; e tecendo, daquela troca genuína, distintas maneiras de ler o ambiente ao meu redor.

No último ano do colégio – que terminava na quarta série do Ensino Fundamental –, fui obrigada a sair do meu aconchegante nicho e aplicar para outras escolas. Senti, é claro, sincera insegurança, lembrando de todos os comentários que, embora não conseguisse entender por completo, sabia depreciativos. Entretanto, ingressei sem maiores problemas no Colégio Santo Agostinho, no qual, dentre infelicidades e felicidades (a instituição tem, é verdade, consideráveis qualidades), me formei no Ensino Médio. Me vi, então, como parte do sistema educativo insosso de pessoas iguais e uniformizadas a que tanto tinha resistido, no qual não cabiam referências a cor de aura.

Do caminho percorrido, posso afirmar que conviver com as diferenças, ao contrário do que pareciam achar as pessoas à volta, não me fez crescer menos. A oportunidade de compartilhar experiências com aquelas crianças, num processo de doação mútua, me possibilitou compreender o outro de forma muito mais completa e sincera (ainda que tenha consciência de todas as minhas limitações). Devo ao meu colégio de infância muito da empatia que atualmente carrego, e que faz parte da minha autodefinição – e esse precioso aprendizado eu não teria tido em uma escola composta apenas por “pessoas como eu”, separadas em caixotes para caber no mundo sem fazer bagunça. Meu colégio de infância me mudou para a vida toda.

* Juliana Ludmer, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio e mestranda em Sociologia e Direito pela UFF.







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