Que o “espírito de Minas” nos visite para repensarmos, neste outro século, o legado da poesia de Drummond –essa vibração de consciência lírica, entre mineira e cósmica, socializável na medida mesma em que é tão pessoal.

O poeta antecipou-se e perguntou, em meio a sua trajetória, na onda alta do livro “Claro Enigma” (1951): “Que lembrança darei ao país que me deu / tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?”.

Nos versos desse soneto “Legado”, ao tempo em que preteriu o moderno pelo “eterno”, aludia cerimoniosamente à famosa pedra inaugural de “No meio do caminho”, poema que nos primeiros anos modernistas marcava uma nova gramática e a disposição nascente de uma obsessiva sensibilidade crítica, de lirismo confessional e de lucidez irônica.

No “poema da pedra” estava a matriz poética drummondiana, apta a desdobrar-se: sucessivos e variados enigmas vão provocando a sensibilidade do sujeito e a reação reflexiva das “retinas tão fatigadas”, instando-o a compor perplexidades e lucidez, carências projetadas na luz desnorteante.

“No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.”

Variadas são as pedras do caminho, as atribulações íntimas desse caminhante do século 20. O poeta gauche, desajeitado sujeito, tira partido da insuficiência e molda suas livres perplexidades em registro crítico. Drummond habilita seus leitores a ocuparem esse lugar inquieto da incerteza e da relativização modernas, moduladas por recursos poéticos tão altos como culposos em sua fome de ideais.

Se o mundo se recusa a caber na intimidade de um sujeito tão declaradamente restrito, este sabe espelhá-lo em negativo como aspiração utópica: “onde não há jardim, as flores nascem de um secreto investimento em formas improváveis”. Mas se o sujeito amarga seu deslocamento na ordem maior dos poderes violentos do mundo, particulariza sua biografia e sua classe no desejo de estar entre os homens –e a necessidade bruta da flor social rompe no asfalto como uma espera.

Uma dialética desse tipo impõe-nos considerar o que seja nosso estar no mundo, ao mesmo tempo em que nos provê da riqueza de ritmos e imagens em que se faz poética.

Ao longo de sessenta anos de produção, Drummond amarrou com laços constantes e variados o que numa crônica identificou como a “rotina” e a “quimera”, isto é, as marcas do cotidiano de quem habita a “praça dos convites” e o desejo de projetá-los até onde alcança a consciência idealizante.

A busca instiga e o desencontro tem beleza –talvez seja este o movimento essencial que o poeta imprime em nossa cumplicidade de leitura.

Como a busca e o desencontro vão referindo objetos muito variados ao longo do século, identificados na formação do sujeito e no tempo social, variadíssimo é o painel de temas e formas que se aglutinam na ampla poética drummondiana.

Lá estão a timidez investigativa, a escavação das palavras, o telurismo da província, a atração do moderno, a culpa da lucidez irônica, a sedução socialista, o retorno crítico aos mitos, a memória escavadora, o adeus desencantado –que se vão expressando na oralidade, no epigrama, no verso solene, na narrativa, na especulação linguística, no discurso solto ou seco, na interrogação e na negativa.

Em cada um desses tópicos espelha-se algo que está em nós mesmos, como sabe conseguir a façanha de um grande lírico.

Num tempo em que o Brasil se aflige, na busca ou na esquiva de si, lembremos que o poeta nunca se ajustou a algum nacionalismo: não chancelou a síntese de interesses tão dispersos a que pudesse chamar de pátria, e em seu “Hino Nacional”, num longínquo 1934, deu voz a uma corajosa perplexidade: “Nenhum Brasil existe. / E acaso existirão os brasileiros?”

A pergunta continua em aberto, para quem não se contenta com a resposta pronta de alguma ideologia. Aberta segue também a poesia de Drummond, como expressão de uma consciência às voltas com seus limites e seu desejo de mundo.

* ALCIDES VILLAÇA é professor de Literatura Brasileira da USP

Fonte: Alcides Villaça/ Especial para Folha. Folha Ilustrada

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