A vaga
De manso surge a vaga.
Vem de leve de uma ruga do mar que o vento ensaia
impelir e rolar. E rola e em breve
numa auréola de espumas cinge a praia.

E é majestosa e bela quer se eleve
expandindo-se toda ou se contraia,
erga-se em cristas brancas como a neve
ou rebramando escachoante caia.

Tal como a vaga é o meu amor por ti
férvido, impetuoso — o que eu senti
no coração com mais ardor vibrar.

Amor que de meus versos dentre a espuma
borbulha e se agiganta e se avoluma

como a vaga rolando sobre o mar.
– Carlos Marighella, no livro “Poemas: rondó da liberdade”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

§

Balada à descritiva
Morra, meu Deus, a Descritiva,
esta matéria sem valor,
que, à tarde, é coisa intempestiva
assunto ouvir tão maçador.
Na sala B, fornalha viva,
que mal me faz estar presente!
Concede, ó Deus, que a Descritiva
um dia morra de repente.

Que disciplina tão nociva!
Como na sala faz calor!
Calor gostoso que incentiva
a um sono bom, reparador.
Morra, Jesus, a Descritiva
acompanhada da tangente,
da Geometria Projetiva
e o mais que amola n’aula a gente.

O sala B, a perspectiva
do teu contorno causa horror,
queima, Senhor, a Descritiva,
joga-a no lixo por favor.
Horas de dor, tarde aflitiva,
a ver traçar linhas de frente,
cousa que a breve trecho aviva
em mim o tédio e a raiva ardente.

Morra de vez a Descritiva,
que a sua perda ninguém sente.
Mas se a “bichona” ficar viva,
morra eu então, subitamente.
– Carlos Marighella (Na aula – Escola Politécnica, Salvador, outubro de 1931), no livro “Poemas: rondó da liberdade”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

§

Canto da terra
A terra tem tudo
e plantando é que dá.

E plantaram e plantaram
ou já estava plantado.
A floresta amazônica,
o rio e os peixes
e o balacubau.

A caatinga existia
com a braúna,
o mandacaru
e o gravatá cariango.
As coxilhas do Sul,
o maciço do Atlântico,
a Serra do Mar,
os pinheiros erguidos,
o rio Amazonas,
o rio São Francisco,
o rio Paraná…

Canaviais assobiando,
cortina verde estendida
sobre imensa extensão.

E plantaram café
e cacau e borracha…
E plantaram erva-mate…

Com o escravo e o imigrante
tudo se fez.
Comidas meu santo,
a mulata, a morena…
e até a loura surgiu.
A índia já havia,
a gringa veio depois.
Quem atrapalhou
foi gente de fora
que não trabalhou.

Eu canto a terra…
Todos sabem que outra
mais garrida não há…
“Teus risonhos, lindos campos têm mais flores”…
Bom! Lírios já houve,
mas agora é que não.

Eu canto a terra,
eu canto o povo…
Cantam os poetas
e cantando vão…
– Carlos Marighella, no livro “Poemas: rondó da liberdade”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

§

Capoeira
Capoeira quem te mandou,
capoeira, foi teu padrinho.

O berimbau retinindo
na corda retesa,
cadência marcada
da ginga do jogo.

Zum, zum, zum,
capoeira mata um.

A perna direita
lançada pra frente,
o peso do corpo equilibrado na esquerda,
os braços jogando
de um lado pro outro…

Capoeira quem te ensinou?

De repente uma queda,
o capoeira na terra,
o aú,
de cabeça pra baixo,
as pernas no ar,
a rasteira varrendo
como foice no chão,
o corta-capim, o rabo-de-arraia,
e o inimigo caindo
de supetão,
ao puxavante
da baianada.

Luta africana
que o mestiço encampou,
que os guerreiros da mata,
quilombos, palmares,
souberam jogar.
Que o angolano nos trouxe,
que o mestre Pastinha nos soube ensinar.

Coreografia. Jongo do povo.

Zum, zum, zum
capoeira mata um.
– Carlos Marighella, no livro “Poemas: rondó da liberdade”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

§

Confraternização
Braços caídos
Não mais as mãos nervosas das tecelãs
tocando os
teares,
pondo emendas no fio
não mais o matraquear dos teares
batendo
num barulho monótono, ensurdecedor
Apenas braços caídos,
As operárias pensando nos filhos
com fome
Depois vieram os soldados,
Fuzis embalados,
Defender a propriedade do dono da
fábrica
Mas também tinham filhos,
Mães, noivas, irmãs
A fome era a mesma nos seus lares
também
E as tecelãs os saudaram chamando-os de irmãos
Agora na fábrica há braços erguidos
Aclamando
E há mãos se apertando
– Carlos Marighella, no livro “Poemas: rondó da liberdade”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

§

Liberdade
Não ficarei tão só no campo da arte,
e, ânimo firme, sobranceiro e forte,
tudo farei por ti para exaltar-te,
serenamente, alheio à própria sorte.

Para que eu possa um dia contemplar-te
dominadora, em férvido transporte,
direi que és bela e pura em toda parte,
por maior risco em que essa audácia importe.

Queira-te eu tanto, e de tal modo em suma,
que não exista força humana alguma
que esta paixão embriagadora dome.

E que eu por ti, se torturado for,
possa feliz, indiferente à dor,
morrer sorrindo a murmurar teu nome.
– Carlos Marighella (São Paulo, Presídio Especial, 1939), no livro “Poemas: rondó da liberdade”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

§

O país de uma nota só
Não pretendo nada,
nem flores, louvores, triunfos.
nada de nada.
Somente um protesto,
uma brecha no muro,
e fazer ecoar,
com voz surda que seja,
e sem outro valor,
o que se esconde no peito,
no fundo da alma
de milhões de sufocados.
Algo por onde possa filtrar o pensamento,
a ideia que puseram no cárcere.

A passagem subiu,
o leite acabou,
a criança morreu,
a carne sumiu,
o IPM prendeu,
o DOPS torturou,
o deputado cedeu,
a linha dura vetou,
a censura proibiu,
o governo entregou,
o desemprego cresceu,
a carestia aumentou,
o Nordeste encolheu,
o país resvalou.

Tudo dó,
tudo dó,
tudo dó…
E em todo o país
repercute o tom
de uma nota só…
de uma nota só…
– Carlos Marighella, no livro “Poemas: rondó da liberdade”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

§

O urubu
Pairando pelo espaço onde quer que pressinta
carniça, podridão, matéria decomposta
essa ave original de cor preta retinta
o cheiro da imundice alegremente arrosta.

Vem descendo depois. Já não é uma pinta
escura na amplidão do firmamento exposta.
Vem descendo inda mais, cada vez mais distinta,
até que no terreno o corpo feio encosta.

Desde então principia a ceia horripilante
e belisca a esterqueira e grunhe a cada instante,
sacudindo-se toda, inquieta e assustadiça

Assim como o urubu há no alto muita gente
poderosa a fartar que, entanto, moralmente
só consegue viver à custa de carniça
– Carlos Marighella (São Paulo, Presídio Especial, 1939), no livro “Poemas: rondó da liberdade”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

§

Fernando de Noronha
Fernando de Noronha. Arquipélago. Ilha.
Plantada no mar
como um pedaço de carvão boiando nas águas do Atlântico.
O Pico se elevando como o Pão de Açúcar,
o Espinhaço do Cavalo,
o Morro dos Remédios com o Forte no alto,
e na Praça dos Remédios a igrejinha caiada.

A vegetação rastejante, quase à flor do terreno,
o mata-pasto e a burra-leiteira,
de cujos talos quebrados
goteja um leite cáustico, violento,
que queima os olhos e provoca cegueira.
E o cabo-de-raposa e as cactáceas
que infestam o solo com os espinhos remosos.

E lá para o Sul, para a Sapata espalmada,
a pequena floresta de árvores linheiras,
sugadas de parasitas, os cipós pendurados,
com as pontas tocando no chão escaldante.

E os mulungus e as bananeiras de folhas ao vento,
subindo as encostas escarpadas do Pico.
Os cajueiros carregados de frutos vermelhos,
mamoeiros, pinhais e coqueiros
de palmas verdes tremulando sobre o branco das praias.

A praia do Cachorro, que o mar esburaca,
carregando a areia para a praia vizinha,
Santo Antônio chamada,
onde as balsas aportam para carga e descarga.

Fernando de Noronha,
com seus peixes e pássaros.
A guarajuba, a cioba, o cangulo,
a venenosa urubaiana e a albacora do alto-mar.
O mumbebo que mergulha para fisgar a sardinda,
e o alcatraz que a arrebata às bicadas ao mumbebo.

Ilha sem rios, com águas amargas
arrancadas às entranhas da terra
em poços profundos e cacimbas famosas
– Cacimba de Mulungu, Cacimba do Padre.

Fernando de Noronha com suas lendas ingênuas
– a lenda da Alamoa,
os amores proibidos no Açude do Gato,
as estórias dos bigodetes,
as vinganças dos presos traídos no amor,
as mãos dos sedutores amputadas a golpes de foice.

As estórias de fugas,
fugitivos tragados por vorazes tubarões…

E os prisioneiros seminus,
sob o sol abrasante,
carregando o munício
vergados ao peso de caixas enormes.
– Carlos Marighella, no livro “Poemas: rondó da liberdade”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

§

Rondó da liberdade
É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.

Há os que têm vocação para escravo,
mas há os escravos que se revoltam contra a escravidão.

Não ficar de joelhos,
que não é racional renunciar a ser livre.
Mesmo os escravos por vocação
devem ser obrigados a ser livres,
quando as algemas forem quebradas.

É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.

O homem deve ser livre…
O amor é que não se detém ante nenhum obstáculo,
e pode mesmo existir quando não se é livre.
E no entanto ele é em si mesmo
a expressão mais elevada do que houver de mais livre
em todas as gamas do humano sentimento.

É preciso não ter medo,
é preciso ter a coragem de dizer.
– Carlos Marighella (1939), no livro “Poemas: rondó da liberdade”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

§

O perfume
Para cada mulher existe sempre um perfume
que agrada ao seu gosto
ou ao desejo que a inspira,
e que lhe é revelado pelo dom do instinto.

Cada mulher traz em si,
entranhado em seu corpo,
um perfume.

A cada espécie de amor
um perfume é mister,
seja amor puro,
infiel,
sacrossanto,
carnal.

Há uma busca eterna à mulher …

E quem sabe essa busca
se resume
na procura de um quê,
algo estranho, insondável,
quem sabe um perfume.
– Carlos Marighella (1939), no livro “Poemas: rondó da liberdade”. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

§

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Carlos Marighella

BREVE BIOGRAFIA CARLOS MARIGHELLA
Carlos Marighella (político, guerrilheiro e poeta) vivenciou a repressão de dois regimes autoritários: o Estado Novo (1937-1945), de Getúlio Vargas, e a ditadura militar iniciada em 1964. Foi um dos principais organizadores da resistência contra o regime militar e chegou a ser considerado o inimigo número um da ditadura. Teve ao todo quatro passagens pela prisão, onde sofreu espancamentos e torturas, sendo a primeira delas aos vinte anos de idade. Militou durante 33 anos no Partido Comunista e depois fundou o movimento armado Ação Libertadora Nacional (ALN).

Começou sua trajetória política bem jovem. Sua primeira prisão ocorreu em 1932, após escrever um poema contendo críticas ao interventor Juracy Magalhães. Em 1936, abandonou o curso de Engenharia Civil e se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB), na época dirigido por figuras históricas como Astrojildo Pereira e Luís Carlos Prestes. Tornou-se, então, militante profissional do partido e se mudou para o Rio de Janeiro.
Durante a ditadura na Era Vargas, foi preso por subversão e torturado pela polícia de Filinto Müller duas vezes. Ficou na prisão até 1945, quando foi beneficiado com a anistia pelo processo de redemocratização do país.

Elegeu-se deputado federal constituinte pelo PCB baiano em 1946, como um dos mais bem votados da época. Mas, nesse mesmo ano, Marighella voltou a perder o mandato porque o governo Dutra, por orientação do governo estadunidense, cassou todos os políticos filiados a partidos comunistas.

Impedido de atuar pelas vias legais, retornou à clandestinidade e ocupou diversos cargos na direção partidária. Convidado pelo Comitê Central, passou os anos de 1953 e 1954 na China, para conhecer de perto a Revolução Chinesa.

Em maio de 1964, após o golpe militar, foi baleado e preso por agentes do Dops dentro de um cinema, no Rio. Libertado em 1965 por decisão judicial, no ano seguinte decidiu se engajar na luta armada contra a ditadura e escreveu o livro “A crise brasileira”.

Foi expulso do PCB, em 1967, por divergências políticas, e no ano seguinte fundou o grupo armado Ação Libertadora Nacional, com dissidentes do partido. A organização participou de diversos assaltos a banco e do sequestro do embaixador norte-americano Charles Elbrick, em setembro de 1969, numa ação conjunta com o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8). Depois, o embaixador foi trocado por 15 presos políticos.

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Com o recrudescimento do regime militar, os órgãos de repressão concentraram esforços em sua captura. Na noite de 4 de novembro de 1969, Marighella foi surpreendido por uma emboscada de proporções cinematográficas na alameda Casa Branca, na capital paulista. Foi morto a tiros por agentes do Dops, em uma ação gigantesca coordenada pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. A morte de Marighella marcou a história da resistência armada urbana à ditadura militar no Brasil. A ALN continuou em atividade até o ano de 1974.
Alguns escritos políticos de Marighella, embora redigidos em português, ganharam primeiro uma edição em outra língua, devido à censura imposta a obras do gênero pelo regime militar brasileiro. É o caso de “Pela libertação do Brasil”, que em 1970 ganhou uma versão na França, financiada por grupos marxistas. Estão disponíveis em português: “Alguns aspectos da renda da terra no Brasil” (1958), “Algumas questões sobre as guerrilhas no Brasil” (1967) e “Chamamento ao povo brasileiro” (1968). Uma das mais divulgadas obras de Marighella, “O minimanual do guerrilheiro urbano”, foi escrita em 1969, para servir de orientação aos movimentos revolucionários. Circulou em versões mimeografadas e fotocopiadas, algumas diferentes entre si, sem que se possa apontar qual é a original. Nessa obra, ele detalhou táticas de guerrilha urbana a serem empregadas nas lutas contra governos ditatoriais.
Fonte: Memória da Ditadura







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