Eu costumo trazer em minhas colunas pontos do pensamento de filósofos e sociólogos que considero verdadeiras preciosidades. Hoje, porém, muito tocada pela recente partida de um dos grandes gênios da música popular brasileira, quero falar sobre Belchior e sua música.

Conheci e me apaixonei pelas canções de Belchior em uma viagem anos atrás na companhia da, também colunista da Prosa, Verso e Arte, Mayra Muniz. Foi ela, aliás, quem me incentivou a ouvir o único cd que encontramos na casa, o que terminou em tardes e mais tardes de verão ouvindo “Coração Selvagem”, tomando cerveja e conversando sobre aleatoriedades fundamentais da vida. Dessa maravilha de encontro musical, conheci uma das minhas músicas favoritas, Paralelas, já citada em uma das minhas colunas sobre Erich Fromm, que me arrebatou com versos como “e no escritório em que eu trabalho e fico rico/ quanto mais eu multiplico, diminui o meu amor” e “como é perversa a juventude do meu coração/ que só entende o que é cruel e o que é paixão”. Versos, aliás, que como tantos outros de sua autoria, podem ser considerados como verdadeiras bússolas pra quem os escuta com mais atenção e sensibilidade.

Vale dizer que esse é um traço que identifico com extrema facilidade nas composições de Belchior: existe essa natureza de advertência própria de quem se põe a compartilhar experiências, dissabores, receios, pretensões e amor. Talvez por isso como jovem, em muitos momentos, ao escutar suas músicas me vejo diante de uma verdadeira conversa entre meus anseios e sua sabedoria.

Esse diálogo com a obra de Belchior acontece, especialmente, quando o contexto é, de alguma forma, político. E, nesse sentido, penso que caiba esclarecer que o que entendo por político transcende Temer, PT, Lava Jato e afins embora, é claro, em muitos momentos esse seja o ponto a ser focado. A política começa nas nossas atitudes e escolhas pra vida, como focar no amor e não só na multiplicação de riquezas, como apregoava “Paralelas”, em trecho já citado acima, e deságua em questões muito maiores, em grande parte alheias à  nossa vontade.

Nesse sentido, recentemente, em virtude dos protestos da greve geral em 28 de abril e do seu falecimento, vi alguns amigos no facebook traçando um paralelo entre os acontecimentos políticos, a repressão policial e a lembrança, vivida ou contada, do período ditatorial marcado pela luta de gerações anteriores à música “Como nossos pais”. O trecho compartilhado era:

“Por isso cuidado meu bem
Há perigo na esquina
Eles venceram e o sinal está
Fechado pra nós, que somos jovens”

E isso, sem nenhum exagero, me soa bastante coerente dentro desse paralelo que aponta para o que vivemos, isto é, um verdadeiro e permanente estado de exceção, conceito fundamental da filosofia política de Giorgio Agamben abordado na minha penúltima coluna. É só dentro dessa lógica do estado de exceção que a gente pode, minimamente e muito à contra gosto, “compreender” o que motiva um policial a quebrar seu cassetete no rosto de um manifestante que nada fazia além de expressar sua contrariedade os rumos políticos do país. O desmedido ato de violência ocorrido em Goiás com Matheus Ferreira**, estudante de Ciências Sociais ainda internado na unidade de terapia intensiva até o fechamento desta coluna, chama atenção pela brutalidade e covardia, mas também assusta se pensarmos na atuação policial que visa, deliberadamente, deter a livre manifestação do pensamento dos cidadãos indignados- direito assegurado constitucionalmente, como é sempre importante lembrar. E como essa manifestação versa sobre a discordância com os rumos do governo é quase automático, ainda na canção de Belchior, pensar que tanto sacrifício e dor daqueles que nos antecederam não garantiram que a gente não fosse se surpreender com tanto retrocesso, com o verdadeiro flerte com totalitarismos que se vê por aí…

“Minha dor é perceber
Que apesar de termos feito
Tudo, tudo, tudo, tudo o que fizemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Ainda somos os mesmos e vivemos
Como nossos pais”

Eu nem pretendo adentrar no mérito das questões que eclodem os protestos pelo país. Trata-se sem dúvida de importante discussão, mas não compreendo que esse seja o espaço ou momento adequado para tal, afinal, quero falar sobre Belchior – mas, confesso, que é difícil não fazer desse texto, também um texto rico em conteúdo mais político. Contudo, parto da premissa que, independentemente de preferências políticas, o período que vivemos é, em maior ou menor medida, duro seja financeira e/ ou politicamente.  Por isso creio que este é um tempo de resistir e lutar pelo que se acredita.

Evidente que, mesmo aos que estão mais engajados nas lutas, o cenário de retrocessos é desanimador em muitos momentos. Falo por mim: às vezes tenho a nítida sensação que todo esforço empregado, especialmente na defesa dos direitos humanos, é quase a mesma coisa que enxugar gelo. As causas das violações, via de regra, estão em um nível de complexidade e profundidade tão severos que, de tão estruturais, só nos resta prestar assistência e buscar conscientizar os envolvidos nas questões específicas para que, quem sabe um dia, isso transforme a realidade que se há de viver de modo mais definitivo e amplo. Mas, aí, fica o questionamento cuja resposta me parece implícita: certamente com essas ações não mudamos o cenário com a prontidão que desejamos, mas, ainda assim, não é melhor fazer o que é possível do que ficar de mãos atadas, sempre reclamando e/ou idealizando um mundo melhor como que por magia?

Por mais que as nossas lutas sejam árduas e o contexto seja desolador é preciso não esmorecer, tampouco viver idealizando: “viver é melhor que sonhar”, já dizia a mesma “Como nossos pais” de parte dos trechos destacados acima. É preciso acreditar que “o novo sempre vem”, como, com sua grande sabedoria, nos indicava Belchior. E essas mudanças vêm através desses gestos nossos de resistência, de amor ao próximo (e à si mesmo!), de dedicação e crença em uma vida melhor e mais justa.

Você não sente nem vê 
Mas eu não posso deixar de dizer, meu amigo
Que uma nova mudança em breve vai acontecer

                Para viver e compreender essas mudanças é preciso que estejamos sempre abertos e conscientes. Não dá pra se acomodar ou se apegar ao que nos impede de avançar, a vida é esse constante lançar-se para fora dos hábitos, a vida é puro devir, com diria Nietzsche já que, agora com as palavras de Belchior, todos sabemos que:

(…) o que há algum tempo era jovem novo 
Hoje é antigo, e precisamos todos rejuvenescer

Acredito que como nem “tudo é divino, tudo é maravilhoso” (odeio discordar de Gil e Caetano, mas…), nós, moças e rapazes latino americanos (e de todo o mundo!)  não podemos nos permitir nunca que a nossa alucinação seja suportar o dia-a-dia.  E é por isso, ainda citando “Alucinação”, que encerro a coluna de hoje com os versos repetidos como um mantra na música, deixando-os como um convite meu e do eterno Belchior sobre a nossa postura em relação ao dia-a-dia em todas as esferas da nossa vida, incluindo a política:
Amar e mudar as coisas me interessa mais
Amar e mudar as coisas, amar e mudar as coisas me interessa mais

É isso! Belchior é imenso, maravilhoso e imortal. Que através das suas músicas ele siga sempre vivo na música popular brasileira e também como referência artística de quem e para quem não desiste de transformar a realidade.

**Felizmente, na véspera da publicação desta coluna, Mateus Ferreira da Silva, teve alta da Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital de Urgência de Goiânia (HUGO) e foi transferido para a enfermaria. Nós, da Revista Prosa, Verso e Arte, desejamos a pronta recuperação do Mateus

*Anna Carolina Cunha Pinto, colunista da Revista Prosa, Verso e Arte, escreve sobre suas percepções do mundo associando-as com conteúdos de Filosofia e Sociologia. Formada em Direito pela Universidade Cândido Mendes, mestranda em Sociologia e Direito pela UFF e apaixonada por filosofia.

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Anna Carolina Cunha Pinto (colunista)







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