Um relato sincero sobre admiração e minas-tiro

Lembro com alguma precisão da primeira vez em que senti, conscientemente, admiração por uma mulher. Não me refiro a mulheres próximas desde a infância ‒ pelas quais, por terem crescido junto a mim, sentia uma massa indefinida de sentimentos, dentre os quais, claro, admiração. Refiro-me, sim, à ocasião em que me deparei pela primeira vez com a admiração pura, goela-abaixo, que destoa de todos os sentimentos e faz perder o ar.

Era o primeiro semestre da faculdade, e eu estava sendo apresentada às atividades do Centro Acadêmico de Direito. Dentre vários homens, uma mulher, que já estava nos últimos períodos do curso. Ela não preenchia nenhum dos requisitos do que, àquela época, eram considerados por mim “estereótipos da feminilidade” (não tenho orgulho disso, mas em relatos sinceros é preciso mostrar o pior de si): tatuada, expressava, de forma autêntica, todos os seus sentimentos sobre o mundo, injustiças sociais, sexualidade, hipocrisias, autores importantes, ora em tom briguento, ora emocionada, num caos que, nela, caía muito bem. Admirá-la me fez muito bem, mas também me fez mal. Recém-chegada à maioridade, e acostumada a admirar apenas homens (em especial mais velhos), ainda era difícil compor aquele sentimento cá dentro. Admirar uma mulher de idade semelhante à minha (não tinha nem a desculpa do “em alguns anos chego lá”), que contrastava tanto comigo significava, de certa forma, admitir a “superioridade” de tudo o que eu não era. E nessa bagunça de sentires, por momentos eu me encorajava a ser mais como ela; por outros, buscava me diferenciar do seu modelo, negando a admiração ‒ tudo isso internamente, jamais disse uma palavra a respeito do assunto com qualquer ser vivo (até agora).

Ainda não entendia muito bem o que era admirar uma mulher. Até então, como disse, minhas admirações eram sempre limitadas a mulheres que me amavam e a quem eu também amava, e a ligação era composta por ignições confusas e de difícil separação. E reconhecer a superioridade de outra mulher em algum aspecto trazia reações confusas, tanto por conta da competição a que culturalmente somos, desde pequenas ensinadas a reproduzir, quanto em razão das inseguranças que trago (todas trazemos) desde sempre, todas maximizadas a partir da confrontação com a potência de outra pessoa, de outra mulher. No meio disso tudo, não posso esquecer, vinha a culpa derivada da autoconsciência de todos esses sentimentos, aquela culpa teimosa que não sai nem esfregando no banho.
Contudo, a partir daquele primeiro momento, o fato foi se tornando cada vez mais frequente – não porque eu estivesse pré-disposta a admirar mulheres, não estava, mas de forma quase imposta: elas, as mulheres ao meu redor, foram me surpreendendo cada vez mais. Ao longo da minha graduação, grande parte dos destaques acadêmicos do corpo discente eram mulheres, e eu me sentia sortuda de poder partilhar cadernos e discutir a matéria com elas. Formou-se à minha volta, espontaneamente, uma espécie de “coletivo de estudo feminino”, no qual todas se ajudavam ‒ o que me fez, pouco a pouco, desconstruir a barreira da competição. Eu admirava aquelas mulheres, inteligentes, fortes e seguras, e não queria competir com elas: juntas, eu percebi, íamos mais longe.
Com o tempo, a coisa foi melhorando. A conta-gotas, as mulheres de meu convívio foram me ensinando a admirá-las ‒ é precisamente esta a impressão que tenho: nos últimos anos, fui (re)ensinada por mulheres a admirá-las, sentimento que até então, à exceção das mulheres-parentes ou de uma ou outra mulher mais velha, era direcionado a homens. Tive sorte: fui sendo cada vez mais cercada de “minas-tiro”, como gosto de chamar, e a pergunta “como eu nunca percebi que ela era tão incrível antes?” se consolidou paulatinamente como uma constante na minha cabeça.

Esse ano, mais uma vez graças a amigas incríveis, passei a ter ainda mais acesso a obras de mulheres. Em primeiro lugar, pelo convite para participar como colunista da Revista Prosa, Verso e Arte, cujo conteúdo é selecionado por duas mulheres. Por intermédio desse site, passei a ler trabalhos de diversas “minas-tiro”, colunistas e amigas, que me fizeram e fazem exclamar sinceros “uau” ‒ entre elas, acreditem, também aquela mulher tatuada do meu primeiro período de faculdade, a qual se tornou ainda mais admirável. Em segundo lugar, em virtude da sugestão, feita por outra “amiga-tiro”, de uma relação de livros escritos por mulheres, os quais estou, dentro de um grupo de leituras (composto por mulheres, claro), devorando aos poucos e vêm me deixando sem ar, não só porque são maravilhosos, mas também porque me ajudam a compreender toda essa confusão entulhada dentro de mim. Obras que falam tanto pra mim e, no entanto, jamais tinham entrado na minha bibliografia-da-vida (por que será?).

O caminho foi longo e, como todo percurso, nunca espero concluí-lo; mas agora, tendo o apoio das minhas mulheres fortes, e ao lado das lições de Elena Ferrante; Conceição Evaristo; Marcela Serrano; Chimamanda, Elisa Lucinda; Simone de Beauvoir; Carolina Maria de Jesus; Ana Paula Lisboa; Angelica Freitas, entre muitas mais, tornou-se fácil admirar outras mulheres, sem qualquer necessidade de ressalva interna. Às minhas mulheres fortes: obrigada por seguirem me ensinando.

* Juliana Ludmer, colunista da Revista Prosa Verso e Arte. Formada em Direito pela PUC-Rio e mestranda em Sociologia e Direito pela UFF.

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